Conto: A estrela do mar e a epidemia do “se”

Conto 15 dezembro 2019  •  Tempo de Leitura: 5

Era uma vez uma estrela do mar que se sentia orgulhosa por dizerem ter nascido do amor entre um grão de areia e uma estrela do céu. Apesar de não ter cérebro nem coração, andava muito apreensiva e preocupada com uma epidemia que se espalhara por todos os oceanos. Era famosa a sua capacidade de regeneração já que, se perdesse um braço, facilmente reconstruía outro e até poderia gerar uma nova estrela do mar a partir do membro separado e, imbuída do mesmo espírito, queria fazer alguma coisa para acabar com aquela catástrofe.

 

A comunidade médica marítima estava em polvorosa pois o surto contagioso afetava todos os peixes e animais marinhos. A origem do vírus era desconhecida e o que era inequívoco era que ninguém escapara a tamanha calamidade. Deram-lhe o nome de Epidemia do “Se”. Os sintomas eram notórios e todos os seres dos oceanos revelavam o mesmo comportamento.

 

Os polvos, as lulas e as lagostas, desgostosos com o rumo dos mares, criticavam tudo e todos. A culpa era da globalização, do capitalismo e dos governantes das regiões mais ricas e poderosas do planeta que só pensavam egoisticamente em si e subjugavam os demais com as suas políticas sociais e económicas. Diziam que se mandassem e se o destino do mundo subaquático estivesse nas suas mãos tudo seria bem melhor e o planeta daria uma volta completa.

 

Os cavalos marinhos e as raias queixavam-se das políticas dos governos das suas zonas de habitat, dos tachos que arranjavam para os seus amigos, das cunhas e da corrupção de que os poderosos eram protagonistas.  Achavam que os peixes não sabiam eleger políticos decentes e inteligentes e que os representantes legalmente eleitos pelos animais marinhos se esqueciam das promessas eleitorais, só pensavam no prestígio e ignoravam o povo simples e humilde. Diziam que se governassem, tudo seria muito melhor e tudo seria bem diferente.

 

As moreias e os baiacus só condenavam, criticavam e denunciavam as decisões dos autarcas, acusando-os de prepotência, abuso de autoridade, burocracia e falta de sensibilidade e boa-vontade diante dos problemas reais das populações locais e regionais. Diziam que se fossem líderes políticos tudo mudaria, mas, como não tinham poder, nada podiam fazer.

 

Os corais, as anémonas e os ouriços-do-mar criticavam por tudo e por nada os patrões e os responsáveis pelos seus setores de trabalho. Acusavam-nos de arrogância e de não perceberem patavina de produtividade, eficiência, rendimento, organização e relações laborais e profissionais. Achavam sempre que tinham competência e responsabilidade para terem cargos mais importantes nos escritórios, lojas e empresas. Se fossem empresários, se tivessem capital, se tivessem poder, tudo seria bem diferente. Para melhor, claro.

 

Os seres luminosos, as águas vivas e as lesmas queixavam-se das suas famílias. Todos conheciam e elogiavam determinados pais ou mães ou filhos que eram fantásticos. Mas lamentavam-se das manias dos seus avós, das decisões dos seus pais, das traquinices dos seus filhos. As outras famílias eram de uma harmonia digna de registo. Se fossem de tal família, seriam mais isto e aquilo, mas como tinham nascido e crescido nas suas, nada feito.

 

Todos os seres marinhos estavam contaminados pela Epidemia do “Se” e, por isso, não eram felizes. Imaginavam e idealizavam um oceano que não era o seu e nunca estavam satisfeitas com o que tinham. Era saudável querer mais e melhor, mas o utópico tinha-se tornado uma obsessão doentia que a todos perturbava e prejudicava.

 

Então, a estrela do mar, depois de muito pensar, ofereceu a todos uma caixinha com o medicamento que os salvaria da Epidemia do “Se”. Cada ser marinho, durante uma hora por dia, devia afastar-se de tudo e todos para encontrar-se a sós consigo mesmo. Devia estar em silêncio, contemplar serenamente a paisagem, respirar fundo e, depois, com os olhos fechados, dialogar com a sua consciência. 

 

O papelinho das indicações terapêuticas dizia que a felicidade dependia de cada um e não de locais, pessoas ou circunstâncias exteriores. Cada um tinha que deixar de lamentar-se, acreditar mais em si mesmo e dar-se gratuita e desinteressadamente aos demais. O essencial era amar. Surpreendentemente, ou talvez não, a epidemia rapidamente foi dizimada.

Paulo Costa

Conto

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