«Fátima»

CineCartaz 5 maio 2017  •  Tempo de Leitura: 7

Um dia que os historiadores queiram compreender os vários países de que somos feitos deverão, entre muitas coisas, ver os filmes de João Canijo. Depois de “Sangue do meu Sangue”, “Fátima” consegue continuar a viajar pelas periferias do Web Summit e das startups com que nos enganamos para nos integrarmos numa ilusão de modernidade sem povo nem cultura. Em “Fátima”, como em quase tudo o que Canijo faz, não há nem o romantismo do intelectual urbano enfadado, nem o desrespeito anedótico do “kitsch”. Apenas e só a esmagadora honestidade de mergulhar na vida das pessoas sem outra vontade que não seja a de a ver e compreender. Na realidade, o filme oferece-nos, como ficção, uma aproximação muito mais rigorosa à realidade do que qualquer reportagem que alguma vez tenha lido sobre as peregrinações a Fátima. E isto resulta da forma como Canijo e os atores com que trabalha preparam os filmes. E, claro, do talento esmagador de Rita Blanco, Anabela Moreira e aquelas 11 mulheres.

 

 

Não sei se “Fátima” é um filme sobre mulheres ou sobre o arreigado catolicismo nacional. Talvez seja sobre as duas coisas, porque as duas se confundem totalmente, como a relevância primeira do culto mariano comprova – para a fé popular da maioria dos católicos Nossa Senhora é quase mais importante do que Jesus. O filme é seguramente sobre Portugal.

Continuando tão ateu como sempre fui, há poucas coisas no meu olhar sobre o mundo e sobre Portugal que tenham mudado tanto, desde a minha juventude até hoje, como a minha relação com a religião. O que, curiosamente, contraria o meu percurso político da esquerda comunista – que, graças à sua implantação popular sempre abordou com muita cautela o fenómeno religioso – para uma esquerda mais libertária. Da irritação racionalista contra as superstições e a alienação passei para uma tolerância quase solidária com a resiliência da fé comunitária à selvajaria individualista e aculturada dos nossos tempos. Poderá dizer-se que fiquei mais conservador, mas prefiro pensar que fui ganhando uma maior compreensão da natureza humana – os conservadores dirão, claro está, que é a mesma coisa. A evolução não é apenas ou especialmente ideológica, é existencial. Uma coisa que, infelizmente, nunca se pode passar para as próximas gerações. O fascínio pelo novo é sempre mais forte para quem quer, com toda a legitimidade, mudar o mundo dos pés à cabeça. Atirando fora o bebé com a água do banho, como também é inevitável. E o bebé é bem visível em “Fátima”: o sentimento de comunidade, com todo o seu asfixiante controlo social (também lá está), mas a sua comovente e empolgante experiência de elevação.

“Fátima” também é sobre sacrifício. Sobre o sacrifício das vidas normais e como é em mais sacrifício que encontram a sua libertação. Como se a liberdade de vidas sacrificadas por condições impostas por outros só se pudesse conquistar no sacrifício que nos impomos a nós próprios. E como se esse sacrifício, que facilita a experiência mística e libertadora, fosse condições para nos compreendermos como seres humanos. Estando seguramente entre o minúsculo grupo de portugueses que passou a sua infância e juventude ao lado de qualquer vivência religiosa, encontrei este elogio do sacrifício de forma muito evidente na ética comunista. Sem nunca ter experimentado nenhuma, o sentido das peregrinações a Fátima não me é estranho.

Também sou dos que acreditam que o sacrifício autoimposto nos liberta do sofrimento que nos impõem. E que esse sacrifício, com um objetivo final – o Santuário de Fátima, uma sociedade melhor ou qualquer utopia –, só ajuda a construir qualquer coisa de real se for feito em grupo. Essa coisa real é o sentido de pertença que hoje merece escárnio da cultura do individualismo egomaníaco. E é por isso mesmo que sou incapaz de olhar para as novas igrejas de “autoajuda”, evangélicas, que prometem a solução para os problemas individuais como quem vende champô, como olho para as grandes religiões, construídas por camadas de tempo e de símbolos. Encontramos um sentido pragmático da fé tanto na IURD como nas promessas que levam muitos peregrinos a Fátima. Mas o que uma resolve em troca de sacrifício a outras resolvem pedindo apenas dinheiro, o que numa se dirige a uma tradição comunitária, muito presente no mundo rural, outras dirigem-se à solidão suburbana. E é por isso mesmo que a coerência católica condena o capitalismo enquanto essas novas seitas o representam na perfeição.

Muitos dos católicos que conheço não reconhecem nos supostos milagres de Fátima um elemento relevante na sua fé. Tenho, como muitos, convicções sobre a origem do fenómeno de Fátima, que começou por ser popular antes de ser institucional e que acabou por ter, depois da revolução Russa e do anticlericalismo da 1ª República, funções políticas muitíssimo claras. Mas estes fenómenos, como todas as tradições culturais que perduram, são apropriados de formas menos literais. E é por isso que é possível, como em “Fátima”, que os peregrinos cantem, no meio de músicas sobre a terra sem igual que é Vinhais e a roupa de Jesus lavada do Rio Jordão, a “Grândola Vila Morena”, também ela transformada em tradição popular sem referente claro. Porque um povo é muitas coisas e não se divide de forma simples entre crentes e não crentes, conservadores e progressistas, provincianos e cosmopolitas. E é difícil compreender este nosso povo sem compreender o culto mariano, a função libertadora do sacrifício e a experiência coletiva da fé. É difícil compreender este povo sem compreender o que é uma peregrinação a Fátima, retratada com a comovente e habitual honestidade de João Canijo.

 

[Daniel Oliveira | ©Expresso]

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