O papa Francisco e um ano de Covid: O mundo na mesma barca
O papa e o Covid. Trezentos e sessenta e cinco dias de discursos, gestos, orações, atos concretos de caridade. Um autêntico corpo magisterial sobre a doença que revirou o mundo. Desde 23 de fevereiro de 2020, dia em que Francisco realizou a Bari a última viagem antes do confinamento (e a única destes doze meses, à exceção da breve deslocação a Assis para assinar a encíclica “Fratelli tutti”), passou um ano exato. Poucos dias antes, a 20 de fevereiro, a descoberta do “Paciente 1” certificava a difusão do Covid entre os cidadãos italianos. Em Portugal, um dos dois primeiros pacientes detetados, a 2 de março, esteve de férias no norte de Itália e sentiu os primeiros sintomas a 29 de fevereiro.
As palavras e os gestos do papa constituem uma espécie de diário de bordo da barca de Pedro no tempo do coronavírus, além de serem um paradigma para a ação de toda a comunidade eclesial. Sobretudo porque Francisco cose o conjunto das suas intervenções com o fio do Evangelho, declinado periodicamente com relação às recaídas económicas, políticas, ambientais, caritativas deste triste tempo. Está tudo ligado, tinha escrito na “Laudato si’”. A crise mundial é a mais evidente das confirmações. Como atesta também a releitura deste diário, projetado para o futuro.
As medidas preventivas
26 de fevereiro de 2020. É a última audiência geral na praça de S. Pedro antes do confinamento. Daí em diante é transmitida em direto da biblioteca do palácio apostólico. Início de um longo túnel, do qual se sairá, para as audiências gerais, apenas a 2 de setembro, com os encontros presenciais, mas no pátio de S. Dâmaso, mais pequeno e circunscrito. Todavia, na sequência da segunda vaga, regresso à biblioteca a partir de 4 de novembro. Também para a oração do Angelus segue-se a mesma modalidade. O último aparecimento à janela ocorre a 1 de março. Depois será preciso esperar 31 de maio, dia de Pentecostes. «Hoje que a praça está aberta, podemos regressar. É um prazer», afirma naquela data. O Angelus regressa à transmissão pela internet a 20 de dezembro. Só a partir de 7 de fevereiro passado é que Francisco voltou a aparecer à janela do palácio apostólico voltada para a praça de S. Pedro. A 10 de março de 2020 são fechadas a praça e a basílica de S. Pedro. E depois também os museus do Vaticano. Medidas que visam impedir o contágio. A saúde as pessoas antes de tudo será a linha constante de conduta. A 8 de dezembro, Francisco realiza o ato de homenagem à Virgem na praça de Espanha, em Roma, às 7 horas da manhã, praticamente sozinho, para evitar ajuntamentos.
A oração
9 de março de 2020. Quando em Itália começa o confinamento e deixa de ser possível celebrar missas com a presença do povo, o papa autoriza a transmissão em “streaming” da missa matutina na casa de Santa Marta, onde deixam de ser admitidos os fiéis. Será assim até 18 de maio, permitindo a Francisco tornar-se próximo de todos com a oração eucarística. Mas a 17 de abril Francisco recorda que uma coisa é a «necessidade objetiva», outra «o ideal da Igreja sempre com o povo e com os sacramentos». Por isso, a 19 de maio interrompe o “streaming”, dado que em Itália pode voltar-se à missa.
15 de março de 2020, o primeiro domingo de confinamento em Itália. Nas ruas desertas de Roma, Francisco dirige-se à basílica de Santa Maria Maior, dele sempre muito querida, e a San Marcello al Corso, onde se guarda o crucifixo milagroso que, segundo a tradição, fez terminar a peste em 1522. Um gesto simples e antigo como a peregrinação, mas ao mesmo tempo moderno e comunicativo também para a sociedade 2.0. Mesmo se Francisco, naquela tarde, não profere palavra, a mensagem é clara para todos: ninguém se salva sozinho.
A 11 de março, durante o dia de oração e jejum proposto pela diocese de Roma, o papa intervém com uma oração. E a 19 de março reza juntamente com a Igreja italiana.
As ajudas
12 de março de 2020. A pandemia avança e ceifa vidas. São necessárias máscaras e equipamentos sanitários. O papa doa 100 mil euros à Cáritas de Itália para o «primeiro socorro». Será o início de um longo elenco de intervenções, coordenadas sobretudo pela Esmolaria pontifícia. O cardeal Konrad Krajewski (que no final de 2020 contrairá Covid, sem consequências graves) distribui aos mais necessitados e às comunidades religiosas atingidas pelo contágio bens de primeira necessidade. São duas as diretrizes da caridade do papa: apoio aos hospitais através do envio de centenas de equipamentos de ajuda à respiração praticamente em todos os continentes; e ajuda direta aos pobres em várias partes do mundo. É impossível enumerar todas as intervenções. É suficiente recordar apenas a constituição, a 6 de abril, de um fundo de emergência junto das Obras Missionárias Pontifícias, com uma dotação inicial de 750 mil dólares, com o propósito de ajudar países de missão. O Vaticano vai também ao encontro dos comerciantes seus inquilinos, reduzindo sensivelmente os encargos a seu cargo, dado o encerramento das lojas.
A imagem-símbolo
27 de março de 2020. A do papa sozinho, que sobe debaixo da chuva os socalcos do adro da praça de S. Pedro, é a imagem-símbolo do ano, um dos cumes absolutos do pontificado. Imagem de um poder evocativo que não escapa ao olhar do mundo. O ícone evangélico da barca na tempestade, colocado por Francisco no centro daquele memorável momento de oração, não é apenas a realista fotografia da situação, mas é também um grito de dor e um ato de fé realizado em nome de toda a humanidade. «Sobre esta barca estamos todos.» A própria praça de S. Pedro transforma-se naquela tarde numa nova arca de Noé. Sobre a qual, todavia, há lugar para todos. O crucifixo de S. Marcello al Corso, presente no fundo, também ele debaixo de água, indica a direção: «Convertei-vos, regressai a mim com todo o coração».
Os ritos pascais
A praça de S. Pedro regressa ao centro da cena também na tarde de Sexta-feira Santa, encastoada numa Semana Santa jamais vista, pelo menos na história recente da Igreja. Na via-sacra que substitui a tradicional no Coliseu, Francisco permanece em silêncio, deixando falar as meditações escritas por alguns reclusos. Todo o mundo foi colocado na prisão pelo vírus. Os ritos pascais devem respeitar as regras anticontágio, e por isso são celebrados sem fiéis no altar da cátedra na basílica de S. Pedro. No dia de Páscoa não houve varanda para a mensagem “Urbi et orbi”. Mas o papa, ao proclamá-la em direto pelos meios de comunicação, recorda que da ressurreição de Cristo «um outro contágio se transmite de coração a coração. O da esperança».
As catequeses
A chegada da primavera parece dar corpo a essa esperança. Mas faz também baixar a guarda, com os efeitos que se sabem. Pelo contrário, continua altíssima a atenção do papa Francisco aos ensinamentos a extrair e ao futuro a projetar. De 5 de agosto a 30 de setembro, o pontífice dedica todo um ciclo de catequeses à pandemia. E logo desde a primeira intervenção indica os princípios orientadores «que podem ajudar-nos a prosseguir por diante». «Dignidade da pessoa, bem comum, opção preferencial pelos pobres, destino universal dos bens, solidariedade, subsidiaridade, cuidado pela nossa casa comum». De facto um tratado de doutrina social da Igreja. A 4 de setembro envia uma mensagem a economistas, a quem recorda: «Compreendemos melhor que cada opção pessoal recai sobre a vida do próximo». Não faltam, noutras ocasiões, apelos a uma política ao serviço de todos.
A encíclica
A 4 de outubro, em Assis, o papa assina a sua terceira encíclica, “Fratelli tutti”. «Se tudo está ligado, é difícil pensar que este desastre mundial não esteja relacionado com a nossa maneira de nos colocarmos em relação à realidade, pretendendo ser donos absolutos da própria vida e de tudo aquilo que existe». Francisco rejeita a ideia de um castigo divino e sublinha: «É a própria realidade que geme e se revolta». O magistério do papa Bergoglio tyerá nos meses seguintes muitas circunstâncias para explicitar-se. A 20 de outubro, por exemplo, toma parte no encontro da Comunidade de Santo Egídio sobre o tema “Ninguém se salva sozinho. Paz e fraternidade”.
Os pobres e as vacinas
A 15 de novembro celebra-se o 4.º Dia Mundial dos Pobres. “Estende a tua mão ao pobre” é o tema escolhido. E o papa, na sua mensagem, recorda as muitas «mãos estendidas» que «pudemos ver» nestes meses de pandemia. Mas «este é um tempo favorável para sentir novamente que temos uma responsabilidade para com os outros e para com o mundo». E, com efeito, Francisco continua a fazer-se voz de quem não tem voz. Pede repetidamente vacinas para todos: «Seria triste se na vacina para a Covid-19 se desse a prioridade aos mais ricos. É preciso sair da lógica do lucro». E dá o exemplo. Testes gratuitos, alimentos e máscaras para os mais indigentes. Em janeiro de 2021 são vacinados alguns pobres assistidos pela Esmolaria. A 10 de janeiro o pontífice anuncia, numa entrevista, que será vacinado (primeira dose a 13 de janeiro, a segunda a 3 de fevereiro, tal como para Bento XVI), e convida todos a fazê-lo como forma de proteção para si e para os outros. Entretanto, critica os “negacionistas”.
O Natal e o vírus
A 21 de dezembro, no discurso à cúria romana, o papa diz: «Este flagelo foi um banco de prova não indiferente e, ao mesmo tempo, uma grande ocasião para nos convertermos e recuperarmos autenticidade». Com a mesnagem “Urbi et orbi” de 25 de dezembro, faz novo apelo à fraternidade. No “Te Deum” de 31 de dezembro convida a procurar o sentido da pandemia na possibilidade de ajudar os necessitados. E a 1 de janeiro de 2021 afirma: «Será um bom ano se cuidarmos dos outros». O discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, a 8 de fevereiro, encerra o ciclo natalício. Francisco elenca as crises atuais – sanitária, ambiental, económica e social, educativa e política – e indica que a mais grave é a antropológica, isto é, a «crise das relações humanas, que diz respeito à conceção mesma da pessoa humana e a sua dignidade transcendente».
Quaresma, caminho novo
E chegámos aos nossos dias. A mensagem do papa para a Quaresma (12 de fevereiro de 20212) reitera que «viver uma quaresma de caridade quer dizer cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia», e que este tempo de preparação para a Páscoa «é feito para esperar», também num período como o nosso. O sinal mais forte deste ponto de vista é o anúncio da visita ao Iraque, programada para 5 a 8 de março. De novo uma viagem, a encerrar o longo e doloroso parêntesis deste ano. Francisco, como sempre, tem o olhar voltado para a frente. E não quer perder um minuto. De resto, no Pentecostes disse: «Pior do que esta crise é só o drama de a desperdiçar». Não sejam, por isso, dispersas os sofrimentos e as lágrimas de tantos homens e mulheres no mundo inteiro. Porque como Bergoglio sublinhou já em 2015, em Manila, «certas coisas veem-se apenas com os olhos das lágrimas». Aquelas que o vírus está a fazer derramar no mundo. E que, segundo o papa, podem tornar-se lentes poderosíssimas para ver e projetar um futuro novo.
[Mimmo Muolo | In Avvenire]