Não estás sozinho: Novo livro do papa Francisco
“Non sei solo. Sfide, risposte, speranze” (Não estás sozinho. Desafios, respostas, esperanças) é o título do livro que é lançado hoje, 24 de outubro, em Itália, no qual o papa Francisco dialoga com os jornalistas argentinos Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin (ed. Salani). Publicamos um excerto extraído do capítulo 9, intitulado “A capacidade de abraçar”.
No seu país recebia muitas pessoas e escutava-as pacientemente… Nunca temeu que o exercício do pontificado o impedisse de continuar a fazê-lo?
É-me espontâneo. Não é um mérito, mas uma graça de Deus. Quando me perguntam como me defino, respondo «um padre». É a minha vocação. Como bispo de Roma visito as paróquias, entro em contacto com as pessoas e, para ser sincero, é uma coisa de que gosto muito. Obviamente continuo a confessar. Nas audiências gerais as pessoas dão-me a mão, abraçam-me e alguns resumem-me em poucas palavras uma determinada situação que estão a viver. Antes dos dois sínodos sobre a família, por exemplo, alguns contavam-me que tinham formado um novo casal, que estavam juntos há muito tempo e estavam a educar felizmente os seus filhos, mas que lhes pesava não poder receber a Comunhão, e manifestavam-me o seu desejo de o poder fazer. Procuro sempre ser muito compreensivo. Que todos se sintam incluídos. Porque a Igreja deve abrir as portas, e não fechá-las. Há até casos de pessoas que, quando passo na praça de S. Pedro, confessam os seus pecados e eu dou-lhes a absolvição. A proximidade com as pessoas faz-me muito bem.
A insistência secular da Igreja em sublinhar o pecado (que conduz a acusá-la de ter explorado o sentido de culpa) não vai contra a atitude compreensiva que promove?
O pecado é uma realidade, mas também é uma realidade o facto de podermos contar com a misericórdia infinita de Deus. Porque, diferentemente de nós, seres humanos, que por vezes nos cansamos de perdoar, o Senhor nunca se cansa… Devemos arrepender-nos e devemos curar a ferida causada… Por volta de 1500, apresentou-se a S. Filipe Néri, no confessionário da igreja nova… uma pessoa que lhe disse que era uma grande pecadora e que não acreditava que Deus a perdoaria. «Sou imperdoável», repetia. S. Filipe Néri pediu-lhe para escrever todos os seus pecados, depois oraram, deu-lhe a absolvição e, no fim, disse-lhe para levar a folha. «Porquê?», perguntou o penitente, sem precisar de esperar uma resposta. De facto, quando voltou a olhar para a folha, deu-se conta de que tudo o que havia escrito tinha desaparecido. Portanto: o pecado é perdoado, mas é preciso arrepender-se e repará-lo. Se se cometeu um furto, é preciso de alguma forma restituir. Se se causou dano à fama de alguém, é preciso encontrar maneira de a reabilitar. Se se cometeu um crime, deve pagar-se a dívida com a sociedade. Não nos podemos limitar ao sermão.
Todavia há católicos – sejam pertencentes ao clero sejam leigos – que não gostam da sua atitude de proximidade, a sua linguagem compreensível…
Muitos escandalizam-se porque argumentam que eu estou a dessacralizar o papado. Fazem parte daqueles setores, digamos mais aristocráticos. Pelo contrário o povo simples experimenta uma justa veneração para com o papa. “Sacraliza-o” na medida que o venera na qualidade de pastor, de padre, e não como se fosse um príncipe. Há uma sacralidade popular. Quando digo popular não me refiro apenas aos pobres, mas também às pessoas com uma boa posição, que no entanto não aderem a uma sacralidade de corte.
Recordamos quando, na residência de Santa Marta, se ajoelhou para beijar os pés dos líderes do Sudão do Sul, em conflito entre eles, para lhes implorar o fim da guerra…
Foi D. Paul Gallagher que me propôs convidar os líderes das duas partes em conflito, e não para um encontro bilateral, mas para um retiro espiritual de dois dias, com o propósito de fazer nascer, através do recolhimento, os frutos da paz… O retiro teve lugar em 2019 em Santa Marta, e convidámos também o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, e o moderador da Igreja presbiteriana da Escócia, John Chalmers, dado que anglicanos e presbiterianos têm igualmente raízes naquele país… Renunciei a seguir o meu discurso porque me soava excessivamente formal, por isso decidi dizer coisas que me pareciam mais em linha com a atmosfera que se tinha criado, e depois, de repente, senti que devia beijar-lhes os pés. É um gesto extraído da Última Ceia, quando Jesus lava os pés dos seus discípulos para demonstrar-lhes o caminho do serviço. No meu caso tratou-se de um gesto de humilhação, o pedido de um favor, uma maneira de suplicar. Na cultura antiga, o pobre beijava os pés do rico pedindo-lhe dinheiro. E eu humilhei-me pedindo como esmola a paz.
O senhor aponta para uma Igreja afastada o mais possível dos vínculos temporais. Todavia o Vaticano é visto como um elemento de poder…
Quem primeiro se moveu nesta linha e de maneira decisiva foi Paulo VI… O verdadeiro poder da Igreja é o serviço, precisamente como Cristo nos ensinou através do seu testemunho. É preciso dialogar com todos. Eu faço-o até com pessoas de quem não me agradam as atitudes. Até com aqueles que me aborrecem… Os casamentos Igreja-Estado não funcionam… Uma vez, um autarca de uma região mandou fazer um presépio, mas o prefeito chamou-o para lhe pedir para o desmontar. O autarca disse-lhe que tinha feito incluir uma estatueta que o reproduzia. Nesse momento, o prefeito disse que, se ninguém se queixava, podia-o deixar montado. Passado o Natal, encontraram-se, e o prefeito pediu-lhe uma fotografia do presépio, para ver como tinha ficado a sua estatueta. O autarca mostrou-lha, e era… o burro.
E o que diz àqueles que afirmam que os papas vivem rodeados de ouro? O que há de verdadeiro na versão segundo a qual queria vender parte dos bens do Vaticano para dar [o resultado da venda] aos pobres?
Faço-o habitualmente. Atenção: é tudo devidamente inventariado. E, para evitar despesas, tirei do depósito os móveis que estão no meu quarto, coisa que qualquer pessoa do Vaticano pode fazer se deles tiver necessidade. Quanto ao facto de que vivemos rodeados de riquezas, em Santa Marta não há nenhum luxo. É verdade que noutros lugares há salas majestosas e obras de arte de valor incalculável, de Da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael… mas são património cultural da humanidade, não bens comercializáveis. O Vaticano é um grande museu.
Nunca se sente só? É vítima da chamada “solidão do poder”?
Nunca me senti só. Diria que, pelo contrário, tenho demasiada companhia. É verdade que tenho de procurar esforçar-me para discernir entre aqueles que vêm ao meu encontro devido a uma motivação justa e aqueles que, ao invés, ocultam um qualquer interesse. Fico sozinho quando tenho de tomar decisões que não se podem delegar. Mas também é verdade que se são complicadas consulto os meus colaboradores. Mas quando é preciso assinar, sou eu que o devo fazer… As coisas que me cabem, faço-as em primeira pessoa e dou a cara. Obviamente, por vezes tenho de aprovar decisões dolorosas, como, por exemplo, a revogação do estado clerical de sacerdotes ilustres que cometeram um crime. Mas a solidão do poder é outra coisa, e eu não sou vítima dela porque tenho a possibilidade de falar com muitas pessoas boas. Posso contar com muitos amigos.