Jonas - a profecia de um rebelde
O livro de Jonas apresenta-nos uma narrativa invulgar e ousada. O que se segue é resultado de uma interpretação pessoal, na expetativa de suscitar o interesse pelo texto e identificar as interrogações a que ele nos desafia.
Jonas era o fiel súbdito e profeta do reino de Israel (cf. 2 Rs 14, 25). No princípio do livro a Palavra de Deus é-lhe dirigida nestes termos: «Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe que a sua maldade subiu até à minha presença» (Jn 1,2).
Conhecendo a história dos hebreus, o mandato de Deus é, no mínimo, insólito. O Reino do Norte (Israel) fora devastado e conquistado pela Assíria (séc. VIII a.C.), e Nínive não era nada menos do que a cidade mais populosa e influente do império Assírio. Mas, surpreendentemente, a resposta imediata de Deus não é aniquilar Nínive, à semelhança de Sodoma e Gomorra (Gn 19,24-25). À revelia do bom senso, Deus convoca Jonas ao coração do poderio militar e civilizacional deste inimigo para adverti-lo primeiro.
Quão bizarro é este aviso benevolente. O biblista Gerhard Von Rad coloca convenientemente o dedo na ferida: «uma exigência monstruosamente tão inaudita como a que se impõe a Jonas». Por isso, não nos deve surpreender a reação do profeta. Jonas recusa a missão porque deseja a ruína da Assíria. E a sua rejeição é tão radical como a aversão pelo inimigo! O texto refere que ele fugiu de Yahvé embarcando num navio com destino a Társis «longe da presença do Senhor» (Jn 1,3).
A desobediência de Jonas implica renegar a fé e a vocação, excluindo-se da proteção e Graça de Yahvé. O êxodo que escolhe reflete bem a dimensão da sua rutura: Nínive situava-se a oriente de Israel - onde hoje se ergue a cidade de Mossul, no Iraque - e Jonas viaja precisamente na direção oposta, ao extremo ocidente, rumo a Társis, a sudoeste da orla marítima de Espanha.
Na viagem a embarcação é cercada por uma grande tempestade e os marinheiros que viajam com ele temem pelo naufrágio iminente. No miolo deste cenário caótico Jonas «dormia profundamente» (Jn 1,6). A tempestade representa a nefasta consequência da rebeldia. Rejeitar o Deus vivo coloca-nos à mercê de potências destrutivas que não só nos afetam como também aqueles que nos rodeiam; portanto, todos os marinheiros sofrem com esta rebelião. O sono profundo do profeta é mais outro sintoma da sua dramática decisão: alheando-se de Deus, alheou-se da própria realidade envolvente e da existência.
Os marinheiros pagãos, ainda que «a invocar cada um seu deus» (Jn 1,5), assumem inesperadamente o papel de arautos de Yahvé. Despertam o profeta e, pedindo-lhe contas, forçam-no a reanimar a sua identidade adormecida: «Sou hebreu e adoro o Senhor, Deus do céu, que fez os mares e a terra» (Jn 1,9). Jonas apercebe-se das consequências do seu pecado: «Pegai em mim e lançai-me ao mar, e o mar se acalmará, porque por minha causa é que vos sobreveio esta grande tempestade» (Jn 1,12).
A seguir o relato assemelha-se a uma anedota, não fosse ela temperada com uma beleza providente: Jonas é lançado borda fora e as suas palavras, afinal, revelam-se como profecia realizada. Os tripulantes reconhecem Deus como salvador e «fizeram-lhe votos» (Jn 1,16). Que tremenda ironia! Jonas, na obstinação de travar a benevolência divina, atua precisamente de modo a manifestá-la naqueles pagãos. Ao rejeitar a sua vocação profética, fintado pela providência, acaba profetizando o Deus vivo!
Caído no mar e derrotado dos seus intentos, Jonas é devorado por um «grande peixe» (Jn 2,1), outra metáfora da sua rutura com o Deus vivo. Uma vez no ventre do monstro, decide pela primeira vez invocar Yahvé. Suplica o Seu socorro e salvação.
O Deus misericordioso conduz então o monstro a terra firme para lá vomitar Jonas (Jn 2,11), aparentemente próximo da cidade de Nínive. É magnífico saborear o efeito bumerangue que Deus inflige ao seu profeta.
Resignado, Jonas segue finalmente rumo a Nínive. Na cidade colossal onde «eram necessários três dias para a percorrer» (Jn 3,3) somente pregou num dia a mensagem: «dentro de quarenta dias Nínive será destruída» (Jn 3,4). Age como quem desembaraça um fardo de cima dos ombros, e quem sabe, ansiando no íntimo que a ligeireza do seu anúncio degenerasse no esquecimento que conduziria inevitavelmente ao desfecho fatal da sua premissa.
Porém, apesar da negligência de Jonas, a profecia é Palavra ao serviço de Deus e não do seu mensageiro. Por si mesma produz um efeito salvador: não só é rapidamente disseminada, como todos os seus habitantes, a começar pelo rei, arrependem-se! Deus, logo «vendo como renunciavam os seus maus caminhos, arrependeu-se do mal que resolvera fazer-lhes e não o fez» (Jn 3,10).
A reação do profeta não se faz esperar. Jonas liberta uma fúria há muito contida, acusando Yahvé: «Ah! Senhor! Porventura não era isto que eu dizia quando ainda estava na minha terra? Por isso é que, precavendo-me, quis fugir para Társis, porque sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos. Agora, Senhor, peço-te que me mates, porque é melhor para mim a morte que a vida» (Jn 4,2.3).
Jonas não perdoa o perdão de Deus! Ressabiado pela Sua bondade prefere a morte. Mas, Deus, com uma complacência sem limites, demonstra-lhe que os seus inimigos não sabiam sequer «distinguir a sua mão direita, da sua mão esquerda» (Jn 4,11), isto é, incapazes de distinguir o bem do mal. Do princípio ao fim, o texto expõe um Deus cuja última Palavra é a Compaixão – não só em relação aos ninivitas, mas sobretudo a Jonas! Aconteça o que acontecer, independentemente de qualquer decisão, a Misericórdia é suprema.
Cabe-me apenas acrescentar mais duas observações que ressaltam neste livro e julgo pertinentes para uma ulterior reflexão e interiorização.
Primeiro, Jonas, profeta de Israel, protótipo do crente, é a personagem mais impermeável à conversão. Testa a paciência de Yahvé até ao último ato. Em todo o relato permanece rebelde, insolente e impiedoso com Deus e os seus inimigos – ainda que nada disso o impeça de cumprir a sua missão! Em contraste, os pagãos (marinheiros e ninivitas) são exemplares figuras de conversão que, afinal de contas, aderem sem reservas à misericórdia divina.
Por outro lado, o texto desafia-nos a concluir que Deus não conta com a nossa perfeição, mas simplesmente connosco para levar a bom termo a sua vontade. É uma tentação comum e permanente entre nós, cristãos - e noutras religiões -, arreigarmo-nos demasiado às virtudes. Semelhante atitude era alvo da dura crítica de Jesus aos doutores da Lei e aos fariseus: uma virtuosidade que alimentava o ego e a vaidade. «De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo» (2 Cor 12,9) como tão bem exprime S. Paulo. As nossas fragilidades e imperfeições – sejam quais forem e venham de onde vierem! - estão também ao serviço de Deus.
E termino com as palavras tocantes e oportunas de Dietrich Bonhoeffer: «Creio que Deus pode e quer fazer surgir o bem de tudo, inclusive do péssimo. (…) Creio que nem as nossas faltas e erros são em vão, e que para Deus será mais fácil contar connosco neles do que com as nossas supostas boas ações».