Jonas - a profecia de um rebelde

Crónicas 8 março 2018  •  Tempo de Leitura: 9

O livro de Jonas apresenta-nos uma narrativa invulgar e ousada. O que se segue é resultado de uma interpretação pessoal, na expetativa de suscitar o interesse pelo texto e identificar as interrogações a que ele nos desafia.

 

Jonas era o fiel súbdito e profeta do reino de Israel (cf. 2 Rs 14, 25). No princípio do livro a Palavra de Deus é-lhe dirigida nestes termos: «Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe que a sua maldade subiu até à minha presença» (Jn 1,2).

 

Conhecendo a história dos hebreus, o mandato de Deus é, no mínimo, insólito. O Reino do Norte (Israel) fora devastado e conquistado pela Assíria (séc. VIII a.C.), e Nínive não era nada menos do que a cidade mais populosa e influente do império Assírio. Mas, surpreendentemente, a resposta imediata de Deus não é aniquilar Nínive, à semelhança de Sodoma e Gomorra (Gn 19,24-25). À revelia do bom senso, Deus convoca Jonas ao coração do poderio militar e civilizacional deste inimigo para adverti-lo primeiro.

 

Quão bizarro é este aviso benevolente. O biblista Gerhard Von Rad coloca convenientemente o dedo na ferida: «uma exigência monstruosamente tão inaudita como a que se impõe a Jonas». Por isso, não nos deve surpreender a reação do profeta. Jonas recusa a missão porque deseja a ruína da Assíria. E a sua rejeição é tão radical como a aversão pelo inimigo! O texto refere que ele fugiu de Yahvé embarcando num navio com destino a Társis «longe da presença do Senhor» (Jn 1,3).

 

A desobediência de Jonas implica renegar a fé e a vocação, excluindo-se da proteção e Graça de Yahvé. O êxodo que escolhe reflete bem a dimensão da sua rutura: Nínive situava-se a oriente de Israel - onde hoje se ergue a cidade de Mossul, no Iraque - e Jonas viaja precisamente na direção oposta, ao extremo ocidente, rumo a Társis, a sudoeste da orla marítima de Espanha.

 

Na viagem a embarcação é cercada por uma grande tempestade e os marinheiros que viajam com ele temem pelo naufrágio iminente. No miolo deste cenário caótico Jonas «dormia profundamente» (Jn 1,6). A tempestade representa a nefasta consequência da rebeldia. Rejeitar o Deus vivo coloca-nos à mercê de potências destrutivas que não só nos afetam como também aqueles que nos rodeiam; portanto, todos os marinheiros sofrem com esta rebelião. O sono profundo do profeta é mais outro sintoma da sua dramática decisão: alheando-se de Deus, alheou-se da própria realidade envolvente e da existência.

 

Os marinheiros pagãos, ainda que «a invocar cada um seu deus» (Jn 1,5), assumem inesperadamente o papel de arautos de Yahvé. Despertam o profeta e, pedindo-lhe contas, forçam-no a reanimar a sua identidade adormecida: «Sou hebreu e adoro o Senhor, Deus do céu, que fez os mares e a terra» (Jn 1,9). Jonas apercebe-se das consequências do seu pecado: «Pegai em mim e lançai-me ao mar, e o mar se acalmará, porque por minha causa é que vos sobreveio esta grande tempestade» (Jn 1,12).

 

A seguir o relato assemelha-se a uma anedota, não fosse ela temperada com uma beleza providente: Jonas é lançado borda fora e as suas palavras, afinal, revelam-se como profecia realizada. Os tripulantes reconhecem Deus como salvador e «fizeram-lhe votos» (Jn 1,16). Que tremenda ironia! Jonas, na obstinação de travar a benevolência divina, atua precisamente de modo a manifestá-la naqueles pagãos. Ao rejeitar a sua vocação profética, fintado pela providência, acaba profetizando o Deus vivo!

 

Caído no mar e derrotado dos seus intentos, Jonas é devorado por um «grande peixe» (Jn 2,1), outra metáfora da sua rutura com o Deus vivo. Uma vez no ventre do monstro, decide pela primeira vez invocar Yahvé. Suplica o Seu socorro e salvação.

 

O Deus misericordioso conduz então o monstro a terra firme para lá vomitar Jonas (Jn 2,11), aparentemente próximo da cidade de Nínive. É magnífico saborear o efeito bumerangue que Deus inflige ao seu profeta.

 

Resignado, Jonas segue finalmente rumo a Nínive. Na cidade colossal onde «eram necessários três dias para a percorrer» (Jn 3,3) somente pregou num dia a mensagem: «dentro de quarenta dias Nínive será destruída» (Jn 3,4). Age como quem desembaraça um fardo de cima dos ombros, e quem sabe, ansiando no íntimo que a ligeireza do seu anúncio degenerasse no esquecimento que conduziria inevitavelmente ao desfecho fatal da sua premissa.

 

Porém, apesar da negligência de Jonas, a profecia é Palavra ao serviço de Deus e não do seu mensageiro. Por si mesma produz um efeito salvador: não só é rapidamente disseminada, como todos os seus habitantes, a começar pelo rei, arrependem-se! Deus, logo «vendo como renunciavam os seus maus caminhos, arrependeu-se do mal que resolvera fazer-lhes e não o fez» (Jn 3,10).

 

A reação do profeta não se faz esperar. Jonas liberta uma fúria há muito contida, acusando Yahvé: «Ah! Senhor! Porventura não era isto que eu dizia quando ainda estava na minha terra? Por isso é que, precavendo-me, quis fugir para Társis, porque sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos. Agora, Senhor, peço-te que me mates, porque é melhor para mim a morte que a vida» (Jn 4,2.3).

 

Jonas não perdoa o perdão de Deus! Ressabiado pela Sua bondade prefere a morte. Mas, Deus, com uma complacência sem limites, demonstra-lhe que os seus inimigos não sabiam sequer «distinguir a sua mão direita, da sua mão esquerda» (Jn 4,11), isto é, incapazes de distinguir o bem do mal. Do princípio ao fim, o texto expõe um Deus cuja última Palavra é a Compaixão – não só em relação aos ninivitas, mas sobretudo a Jonas! Aconteça o que acontecer, independentemente de qualquer decisão, a Misericórdia é suprema.

 

Cabe-me apenas acrescentar mais duas observações que ressaltam neste livro e julgo pertinentes para uma ulterior reflexão e interiorização.

 

Primeiro, Jonas, profeta de Israel, protótipo do crente, é a personagem mais impermeável à conversão. Testa a paciência de Yahvé até ao último ato. Em todo o relato permanece rebelde, insolente e impiedoso com Deus e os seus inimigos – ainda que nada disso o impeça de cumprir a sua missão! Em contraste, os pagãos (marinheiros e ninivitas) são exemplares figuras de conversão que, afinal de contas, aderem sem reservas à misericórdia divina.

 

Por outro lado, o texto desafia-nos a concluir que Deus não conta com a nossa perfeição, mas simplesmente connosco para levar a bom termo a sua vontade. É uma tentação comum e permanente entre nós, cristãos - e noutras religiões -, arreigarmo-nos demasiado às virtudes. Semelhante atitude era alvo da dura crítica de Jesus aos doutores da Lei e aos fariseus: uma virtuosidade que alimentava o ego e a vaidade. «De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo» (2 Cor 12,9) como tão bem exprime S. Paulo. As nossas fragilidades e imperfeições – sejam quais forem e venham de onde vierem! - estão também ao serviço de Deus.

 

E termino com as palavras tocantes e oportunas de Dietrich Bonhoeffer: «Creio que Deus pode e quer fazer surgir o bem de tudo, inclusive do péssimo. (…) Creio que nem as nossas faltas e erros são em vão, e que para Deus será mais fácil contar connosco neles do que com as nossas supostas boas ações».

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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