Ressurreição: Presença e Revolução

Crónicas 12 abril 2018  •  Tempo de Leitura: 7

Há uns anos, na minha segunda visita a Taizé, frequentei um workshop orientado por um monge da comunidade que nos relatou a fé dos primeiros cristãos.

 

Enquanto partilhava connosco algumas frases dos patriarcas e costumes da Igreja primitiva, fez um comentário marcante que ainda hoje recordo vividamente:«se a preocupação de alguém é a vida depois da morte, então não se pode chamar cristão, mas um filósofo. Os filósofos focavam-se mais nessas especulações, não os cristãos».

 

A ressurreição de Cristo - acontecimento fundacional da fé cristã –, apesar de ocupar um lugar central na liturgia, receio que, para alguns crentes, se resuma a uma espécie de prova sobre o que nos espera depois da morte,ou um milagre que desterra Jesus para o Além.

 

Tom Wright, bispo anglicano de Durham, no Reino Unido, apresenta-nos uma reflexão notável: «As histórias da Páscoa são muito estranhas (…). Elas não encaixam em nenhuma categoria por nós conhecida. Elas relatam-nos uma pessoa que se sente igualmente ‘em casa’ na ‘Terra’ e ‘nos Céus’. (…) O que assistimos nas histórias da ressurreição é o nascimento de uma nova criação. (…) Um novo poder foi libertado no mundo: o poder de refazer o que foi desfeito, de curar o que estava doente, de restaurar o que estava perdido».

 

A ressurreição não projeta Jesus para outro mundo, mas ao núcleo vital deste, para renová-lo! A partir da Páscoa já não há separação entre a vida e a morte. Já não faz sentido pensarmos no antes e depois da morte, mas sim no antes e depois de Cristo.

 

No texto de Wright toca-me particularmente a expressão «em casa». Dela fluem emoções e experiências fortes de convívio íntimo e familiaridade. Esse espaço vital é um excelente ponto de partida para aprofundarmos o mistério Pascal.

 

Com efeito, a ressurreição nunca começou como uma “doutrina do Além”, mas como experiência feita da sucessão de encontros com Jesus Vivo. Porém, como Wright realça, são encontros desconcertantes porque Jesus Ressuscitado, elevado e glorificado até ao mais alto dos Céus, afinal, está simultaneamentecom os seus discípulos, numa proximidade muito íntima e terra-a-terra.

 

Maria Madalena é consolada por ele junto do sepulcro (Jo 20, 11-18); Pedro e os discípulos almoçam com ele sobre «brasas preparadas com peixe em cima e pão» (Jo 21,9) e os onze veem e tocam nele (Lc 24,36-43). Afinal, não é um «espírito» (v.37) nem uma sombra, mas tem «carne» e «ossos» (v.39). O ressuscitado é o mesmoJesus que conheceram, o mesmocom quem «comemos e bebemos» (Act 10,41).

 

Nestes relatos o humano e o divino entrelaçam-se em deliciosas cenas caseiras e familiares. Autênticas janelas que nos mostram o desenrolar da plenitude no dia-a-dia.

 

Vejamos mais a fundo o relato de Emaús (Lc 24,13-33). Após a crucifixão e morte de Jesus dois discípulos saem de Jerusalém, rumo a Emaús. Saem para deixar atrás das costas a esperança judaica, a promessa messiânica, uma cidade sagrada que garantia o triunfo de Deus. Ambos iniciam um caminho de desencanto, distanciando-se o mais possível dessa esperança (v.13), gorada pela crucifixão e morte do seu mestre.

 

É precisamente nesse percurso frustrado que o Ressuscitado decide unir-se a eles, a caminho. Não importa se é o caminho errado! Ele está disposto a percorrê-lo com eles. Basta-lhes a sua presença.

 

Inicia-se um diálogo. Desabafam-lhe as razões da tristeza profunda que os domina e impede de o verem (v.16). Então, Jesus explica-lhes o sentido das escrituras (v.27), mas nunca a partir do passado.

 

Jesus interpela-os a partir do que se está a passar, dos factos presentes, nos dias que elesexperimentam (vv. 19-21), para descobrirem que o presente também é história de salvação. Jesus entranha-se no núcleo vital de ambos. Nas expectativas, sonhos, esperanças e desilusões que os movem no turbilhão do momento. Por isso, é muito clara e feliz a expressão «nestes dias» (v.18) usada pelo evangelista.

 

A intimidade vai crescendo como fermento – apesar de ainda não o reconhecerem. A certo ponto, a cumplicidade entre eles é tão forte que já lhes «ardia o coração» (v.32) e suplicam-lhe: «fica connosco» (v.29), como se dissessem: «agora és um de nós! És um connosco. Não te afastes.» Não desejam atravessar a noite sem ele.

 

A noite da frustração e da dúvida é iluminada pela Presença deste estranho, mas, agora, tão familiar que se põe à mesa com eles, pronuncia a benção, parte e entrega-lhes o pão (v.30). A proximidade e intimidade que se fazia a caminho, culmina agora nos gestos do pão partido e repartido. Veem o Ressuscitado no meio deles: hoje, agora, no presente.

 

Deste encontro brota uma revolução: fazem inversão na marcha do desencanto e caminham para a esperança (Jerusalém). O núcleo vital foi-lhes renovado.

 

Agora, de coração ardente e repleto da alegria pascal, os discípulos tornam-se arautos da Vida, decididos a ressuscitarem outros dos túmulos e sepulturas feitas de frustração, desespero, sofrimento ou morte, até que todas elas se esvaziem, e que todos sejam Viventes…

 

Afinal, Jesus ressuscitou para se juntar a nós no caminho.

Ressuscitou para nos contagiar a Sua Vida e Espírito,

Para transfigurar o presente,

converter a vida em Vida,

a existência em Missão,

até que tudo na «Terra»

seja tal e qual o «Céu» (Mt 6,10).

Assim, ressuscitamos desde que nascemos,

e nascermos para Ele!

Até que a Vida Eterna seja a nossa, única e irrepetível,

Vida n’Ele, HOJE mesmo e sempre.

 

Halleluya! Amén!

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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