Pai Nosso – 1ª parte
O Pai-nosso é a oração cristã por excelência. Entranhar-se nela é, não só, um exercício de interesse, mas vital para todo o cristão, não só como crente, mas também como membro da humanidade.
Cativa-me imenso a narrativa da sua divulgação. Não veio, primeiramente, da iniciativa de Jesus, mas os discípulos, fascinados pela atitude orante do seu mestre – traduzida e tão nitidamente estampada nos gestos, ensinamentos e escolhas daquele galileu –, desejaram contagiar-se pelo seu estilo de ser e de viver na intimidade com o Deus de Israel: «Sucedeu que Jesus estava algures a orar. Quando acabou, disse-lhe um dos seus discípulos: ‘Senhor, ensina-nos a orar, como João também ensinou os seus discípulos’» (Lc 11,1).
Trata-se, pois, de uma oração propagada a partir de uma sedução, um deslumbramento. Foi com os olhos e o coração fixos em Jesus de Nazaré que brotou o desejo de orar o Pai-Nosso. É muito importante perceber que os judeus do primeiro século já possuíam um rol invejável de orações de petição: o Qaddish, as dezoito Bençãos, os salmos, entre outras, pertencentes aos Essénios e ainda aos discípulos de João Baptista. Porém, há discípulos que desejam orar como Jesus e com Jesus, o que atesta a originalidade e espontaneidade do Pai-Nosso. Vejamos:
1. Em traços gerais é uma oração genuinamente universal, como destaca o teólogo espanhol Xávier Pikaza: «Não contém nenhuma referência exclusivamente judaica (nome de Yahvé, patriarcas, Moisés, Lei, templo, cidade/terra sagrada, expiação ritual, tradições nacionais, alimentos puros,...). Tudo o que o Pai-Nosso pede é universal (pai, pão, perdão), sendo, ao mesmo tempo, muito judaico, muito cristão, ou melhor dizendo, humano».
2. A sensibilidade de Xávier é excecional porque, de entre as várias petições exaustivamente analisadas pelos teólogos e exegetas, identifica uma particularmente descurada, a primeira de todas à cabeça: pedir por um Pai. Ninguém ousaria invocar Deus no Templo ou na sinagoga com recurso a esse nome. Seria demasiado pessoal e desrespeitoso dirigir-se a Ele nos termos de Jesus. Porém, ele mudou a natureza da relação com Deus. Do distante ‘Altíssimo’, Deus passa a ser o íntimo ‘Abbá’, Pai – uma das primeiras palavras balbuciadas pelas crianças: ‘papá’ (Abbá). Não se trata de mais um título do cardápio litúrgico, mas o substantivo de Deus. Jesus educa-nos a invoca-l’O de uma forma pessoal, com intimidade e afeto, dispensando qualquer fórmula reverencial.
Pedir por um Pai não é um ato de infantilidade, mas o reconhecimento de que não somos infalíveis nem autónomos de forma absoluta. A Bíblia recorda-nos que também somos ‘pó da terra’ (adamah), seres sujeitos a condicionalismos, fragilidades e contradições. Ninguém é imune à maldade, seja como autor ou vítima.
Esta petição não traduz uma dependência servil. Antes de mais, é o ato de cultivar uma relação autenticamente filial, segundo o exemplo de Jesus, que resulta em última instância numa dependência possibilitante. Significa confiar-se no Único capaz de nos conduzir à plenitude do que podemos realizar enquanto pessoas.
3. O Pai é ‘nosso’! Dos ‘nossos’ e dos outros, de todos e para todos. A oração é um exercício fraterno e comunitário: reza-se entre irmãos e para irmãos. Mais importante ainda, há uma nova família, aberta e sem fronteiras, tal como o coração do Pai que «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 45). É impossível reduzir a oração a uma prece intimista. No paganismo era frequente cada pessoa oferecer dádivas e sacrifícios para obter favores particulares dos deuses. Mas todas as petições do Pai-Nosso têm em conta intenções humanas e universais.
Para reforçar o impacto Jesus insiste que o nosso Pai está ‘nos Céus’. Não menciona o templo de Jerusalém porque nas suas câmaras mais interiores só eram admitidos judeus, e na câmara mais exclusiva do tabernáculo – o ‘Santo dos santos’ – devia entrar apenas o sumo-sacerdote uma vez por ano. Mas os céus não têm limite. Estendem-se do oriente ao ocidente, de norte a sul, envolvendo todos os povos e nações. O Deus do ‘templo’ só pode alcançar aqueles que o visitam, mas o Pai ‘dos Céus’ abraça toda a criação.
4. Outra característica que ressalta à vista só está patente nos evangelhos e não propriamente na oração litúrgica do Pai-Nosso. A fórmula litúrgica convencionou o uso do plural majestático: “que estais nos Céus”, “Santificado seja o Vosso nome», «seja feita a vossa vontade». Este uso legítimo, por razões históricas e de tradição, manteve-se na liturgia e particularmente na nossa tradução portuguesa. Mas em ambas as versões do Pai-Nosso de Mateus (Mt 6,9-13) e Lucas (Lc 11,2-4), quer o grego original, quer a tradução, explicitam claramente o uso do pronome ‘Tu’: «que ESTÁS nos Céus», «Santificado seja o TEU nome», «Venha o TEU Reino», «faça-se a TUA vontade». Não nos detenhamos demasiado na forma, mas no conteúdo. Jesus ensinou-nos a evocar o Pai com a mesma linguagem familiar do lar. Relacionar-se com Ele na base dessa familiaridade é um primeiro passo importante na aprendizagem de uma vida filial.
Este ‘Tu’ é o compromisso de trazer Deus a toda a extensão da vida, sem traçar quaisquer limites. A partir deste ‘Tu’ já nada pode existir de anónimo ou indiferente ao Pai. Vezes demais imaginamos um Deus que se move apenas numa esfera de interesse: a religião. E sob esta ideia, facilmente julgamos que se encontra ausente da vida, de tudo o que nos importa enquanto seres humanos: trabalho, encargos, família, saúde, lazer, vitórias e fracassos, encontros e perdas,… Enfim, como se tudo isto lhe fosse alheio, por ser ‘mundano’. É necessário destruir esse ídolo que não se ocupa nem preocupa com o humano.
O Deus de Jesus, nosso Pai, interessa-se e compromete-se absolutamente com tudo o que a vida acarreta: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10,10). Interessa-se acima de tudo por nós, não apenas pelo seu culto.