Pai Nosso – 2ª parte
5. Jesus anseia a vinda do Reino do ‘Pai’, cujo ‘Bom nome’ deve ser «santificado». Cada judeu piedoso acalentava a fé na chegada do Reino de Deus, uma Terra como é o Céu, um mundo que refletisse a santidade do Criador. Como afirma o teólogo jesuíta José Ignacio González Faus: «a glória, segundo a Bíblia, não é a homenagem que devo a Deus, mas antes o resplendor da Santidade do Seu ser (…) que o nome paterno de Deus resplandeça na realidade, como resplandece a sua grandeza na natureza».
Jesus, privilegiando o cuidado pelos pobres e marginais e curando os enfermos, realizou essa magnífica profecia. Com o Pai-nosso desafia-nos a participar dessa missão, como acrescenta González Faus «para fazer deste mundo, jamais um campo de extermínio, mas antes um lar fraterno e filial» e para que o nome de Deus seja finalmente glorificado e brilhe segundo a expressão idiomática de Santo Irineu de Lião: «A Glória de Deus é o Homem Vivo».
6. O «pão de cada dia» também é nosso. Na Palestina do séc. I era raro um camponês comum gozar sequer de uma refeição diária. Não eram poucos os dias em que, simplesmente, nada havia para comer. O fosso entre ricos e pobres era abissal e só algumas minorias privilegiadas podiam gozar de uma boa alimentação. Jesus com esta petição empregou o termo hebraico ‘lehem’ que não só traduz-se por ‘pão’, mas nalguns contextos também significa ‘carne’ ou ‘sustento’. Portanto, primeiro, Jesus pede que não nos falte alimento no dia-a-dia - um luxo para muitos, mas, segundo ele, um direito divino de todos – e, segundo, em conformidade com a tradução abrangente do termo ‘pão’, que o Pai nos sustente com o essencial, isto é, não propriamente uma ‘côdea de pão’, mas tudo o que precisamos para viver com dignidade (vestuário, trabalho, respeito, lar, paz,…).
7. O perdão é outro dos pedidos fundamentais desta oração. A versão litúrgica menciona o perdão das ofensas, porém nas versões originais em grego de Mateus e Lucas lê-se literalmente: «perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos os nossos devedores» (Mt 6,12) e «perdoa os nossos pecados, assim como resgatamos os nossos devedores» (Lc 11,4). Jesus viveu numa Palestina dominada pelo império romano que, por sua vez, esmagava o povo com um pesado sistema tributário. Bastava um ano mau de colheitas ou de rendimento para a acumulação de dívidas degenerar eventualmente num desmembramento das famílias, onde muitos eram vendidos como escravos. Por isso, no seio de uma sociedade endividada, Jesus propõe uma saída: cada um pode começar a resgatar a dívida do seu próximo, abrindo caminho a uma reconciliação integral que não partisse apenas de um ritual, mas de uma experiência humana libertadora.
Com isso, atesta que o maior poder do pecado é a dívida, enquanto instrumento perverso de manipulação, enquanto possibilidade de amarrar o irmão a qualquer subordinação desumana e mortal. Se dúvidas houver, basta observarmos o que fazem atualmente o FMI e outras instituições financeiras aos países em vias de desenvolvimento. Urge percebermos esta poderosa metáfora do pecado enquanto experiência concreta de cativeiro, como um nó cego e apertado que sufoca.
No Egito os hebreus viviam oprimidos, vítimas de um ‘débito’ impagável e permanente para com o faraó. As suas vidas e o seu tempo pertenciam-lhe em absoluto, sujeitos ao verdugo e a uma servidão absoluta. É nessa conjuntura que Deus decide congregar esse grupo de escravos, convertendo-os num povo livre com uma vida nova: terra para cultivar, reino para prosperar e lei para coexistir em harmonia. O jubileu, celebrado de 50 em 50 anos, seria o memorial dessa experiência redentora: o ano em que todas as dívidas deviam ser perdoadas, os escravos libertos, e as terras de cultivo disponíveis gratuitamente aos pobres e famintos de Israel (Lv 25,1-55).
Jesus anuncia o perdão como o jubileu dos jubileus: a libertação da dívida do pecado, desatados do nefasto grilhão das suas consequências. Com ele é inaugurado o tempo infinito da compaixão, de amnistia aos cativos e da destruição da ganancia e opressão, dando lugar ao serviço da igualdade fraterna e pacífica entre irmãos.
Tudo começa com a misericórdia superabundante do Pai que toca o coração humano com a experiência da graça. E de coração agradecido será possível cumprir a expressão «assim como». Perdoar «assim como» sou perdoado, libertar «assim como» sou libertado, ser filha ou filho «assim como» o Pai.
8. «Não nos deixes cair na tentação, mas livra-nos do mal». É bonito entender o alcance do termo ‘livrar’ usado. Na Bíblia está diretamente associado à salvação. Na língua grega trata-se do verbo ‘ryhomai’ que significa ‘soltar’, ‘arrancar’ ou ‘puxar para si’. O mal é um mistério que nos envolve, de tal forma enraizado nos hábitos e costumes quotidianos que, por nós mesmos, em maior ou menor grau, permanecemos incapazes de escapar à sua influência. Contudo, temos um Pai que nos pode arrancar do maligno, desenraizando-nos da seiva da maldade para puxar-nos até junto de Si e enxertar-nos em Jesus: «Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor. (…) Permanecei em mim, que Eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer.» (Jo 15,1-4)
O Pai-Nosso é uma oração geradora de intimidade filial e fraterna, selada na confiança e na comunhão. Fascina-me que nela não há sequer o mínimo vestígio da tentativa de ‘mudar’ o coração de Deus para nos dar o que desejamos. Jesus seduz-nos a um itinerário orante em contramão: converte-nos precisamente ao que Deus deseja e pode fazer connosco enquanto irmãos.