Martin Luther King: memórias do profeta da liberdade (parte I)
Antes do término de mais um ano senti que não podia deixar passar a memória agradecida de um homem que cavou um «túnel de esperança na montanha do desespero». Há 50 anos, precisamente no dia 4 de Abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado em nome do amor e da liberdade.
Na década de 50 do século passado imperavam as leis segregacionistas «Jim Crow» nos Estados Unidos. Consistiam na separação entre afro-americanos e brancos nos espaços públicos (escolas, bibliotecas, salas de cinema, universidades, lojas, hotéis, empregos,…) gerando um contexto terrível de inúmeras injustiças e atropelos aos direitos humanos por discriminação racial.
Natural de Atlanta, filho de um pastor Baptista e uma professora, Martin Luther King desde muito cedo revelara apetência para a eloquência. Tendo concluído com distinção o doutoramento em Teologia na Universidade de Boston, exercia também o seu ministério de pastor na Igreja Baptista da Avenida Dexter em Montgomery desde 1954. A quebra do anonimato de Martin e a sua missão de profeta começou a 1 de dezembro de 1955.
Nesse dia, entrou num autocarro de Montgomery uma digna senhora costureira afro-americana, Rosa Parks. Exausta, vendo o autocarro cheio, decidiu sentar-se logo na fila dos primeiros dez lugares. Enfrentando a fúria do motorista que a insultava e ameaçava por ocupar um dos primeiros lugares, Rosa permaneceu firme e em silêncio até a polícia arrancá-la à força do autocarro e prendê-la como uma criminosa.
Fora a gota de água para a comunidade negra de Montgomery, saturada de tanto racismo e discriminação. Os líderes ativistas negros que lutavam pelos direitos dos afro-americanos da cidade viram em Martin um jovem erudito e modesto, capaz de inspirar a sua comunidade com moderação, sem exaltar ânimos nem levantar ondas. No melhor dos sentidos e de forma inesperada enganaram-se na escolha.
Na noite do seu primeiro discurso, temeroso, o jovem Martin orou uns minutos antes, e inspirado pelo Espírito Santo – atestam os testemunhos desse dia – proclamou um discurso que moveu a multidão a abalar literalmente as vigas que sustentavam o teto com clamores de júbilo e de esperança:
«Sabem, meus amigos, chega uma altura, chega uma altura em que as pessoas ficam cansadas – cansadas de serem segregadas e humilhadas, cansadas de serem pisadas pelos pés de ferro da opressão. (…) Se estamos errados então o Supremo Tribunal desta nação está errado! Se estamos errados então Deus Todo-Poderoso está errado! Se estamos errados, então Jesus de Nazaré não passava de um sonhador utópico e nunca desceu à terra! Se estamos errados então a justiça é uma mentira!
Se protestarem com coragem e todavia com dignidade e amor cristão, quando os livros de História forem escritos em futuras gerações, os historiadores terão de parar e dizer: Existiu uma raça de gente, gente negra, de cabelo anelado como lã e tez negra, de gente que teve a coragem moral de defender os seus direitos. E desse modo injetaram um novo significado e uma nova dignidade nas veias da civilização.»
Tratava-se apenas do princípio de um milagre…
Martin, eleito líder do Movimento para o Progresso de Montgomery (MIA), reuniu-se com a empresa de autocarros e representantes da Câmara Municipal para exigir o fim da discriminação nos autocarros da cidade, o pedido de contratação de motoristas negros e maior cortesia por parte dos atuais motoristas. Nem a Câmara nem a empresa cederam a qualquer das exigências de Martin.
Entretanto uniu a comunidade afro-americana e promoveu um boicote aos autocarros. Neste movimento insólito de solidariedade, muitos responderam à altura do desafio: King conseguira reunir cerca de duzentos voluntários que disponibilizavam os seus veículos (automóveis, táxis e camionetas de várias igrejas da cidade). Em retaliação os polícias da Câmara faziam operações stop aos carros de boleia e multavam-nos por detalhes insignificantes. Os patrões castigavam e até despediam os seus funcionários afro-americanos quando chegavam atrasados ao trabalho. Mas Martin mantinha a sua comunidade unida, alimentava-lhes esperança e determinação.
O sucesso de Martin consistiu em pôr em prática o princípio evangélico da não-violência, inspirado pelo movimento de resistência pacífica de Mahatma Gandhi. Diria ele mais tarde: «para mim, cedo se tornou claro que a doutrina cristã do amor, posta em prática pelo método da não-violência de Gandhi, era uma das armas mais poderosas de que o Negro podia dispor na sua luta pela liberdade».
Treinava grupos para reagirem pacíficamente face às provocações das autoridades racistas. Dizia: «trata aqueles que te desprezam como entidades sagradas» e lembrava que havia um objetivo maior por detrás deste boicote, acrescentando: «o objetivo é a reconciliação; o objetivo é a redenção; o objetivo é a criação da comunidade dos bem-amados»; «continuaremos a protestar com o mesmo espírito de não-violência e de resistência passiva, usando a arma do amor».
Após um atentado falhado à bomba que destruiu a sua casa; depois de várias ameaças à vida, Martin demonstrou uma resiliência formidável que rapidamente se espelhou em toda a comunidade negra de Montgomery. A mentalidade racista dominante na cidade levou à rua os Ku Klux Klan para aterrorizarem as famílias e demoverem-nos do boicote. Mas, pela primeira vez, ninguém se escondeu em casa com medo dos capuzes brancos e as cruzes em chamas. Pelo contrário, as pessoas de ambos os lados das ruas colocaram-se diante dos seus alpendres, varandas, janelas e de portas abertas, enfrentando de cabeça erguida e com dignidade o cortejo do Klan. Então, o que estava previsto ser um ato terrorista acabou como um número de circo e humilhação do Klan.
Martin fora detido só por uma patética multa de trânsito. Além disso, o Grande Júri do Condado de Montgomery ditou que todos deviam cumprir uma antiga lei do Estado antiboicote. Apesar da detenção de mais de duzentas pessoas, o movimento continuou. Martin foi acusado de chefiar um boicote ilegal e condenado a pagar 500 dólares de multa ou 386 dias de prisão. Ele e a sua equipa recorreram da decisão e apelaram ao Tribunal Constitucional.
No meio de detenções, ameaças, humilhações e meses muito difíceis, a 13 de novembro de 1956 o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais as leis de segregação dos autocarros. A Câmara e a empresa não tiveram outra alternativa senão satisfazer todas as exigências do MIA. A justiça e salvação chegaram a Montgomery pela mediação de Martin. A partir daí choveram pedidos de ajuda de várias comunidades locais e outros estados americanos e a sua fama disseminou-se pelo mundo.
Dois anos depois, acabaria por confessar numa entrevista ao New York Post: «Francamente, estou terrivelmente preocupado. Cheguei ao topo aos vinte e sete anos e agora tenho pela frente uma dura tarefa. Toda a gente vai ficar à espera de me ver tirar coelhos da cartola até ao fim dos meus dias».
King mal imaginara ainda que faria pular uma multidão de coelhos da cartola…
Bibliografia: «Eu tenho um sonho. A Autobiografia de Martin Luther King Júnior», Clayborne Carson (org.), Coleção Vidas, Bizâncio, Lisboa, 2003