Martin Luther King: memórias do profeta da liberdade (parte I)

Crónicas 13 dezembro 2018  •  Tempo de Leitura: 9

Antes do término de mais um ano senti que não podia deixar passar a memória agradecida de um homem que cavou um «túnel de esperança na montanha do desespero». Há 50 anos, precisamente no dia 4 de Abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado em nome do amor e da liberdade.
 
Na década de 50 do século passado imperavam as leis segregacionistas «Jim Crow» nos Estados Unidos. Consistiam na separação entre afro-americanos e brancos nos espaços públicos (escolas, bibliotecas, salas de cinema, universidades, lojas, hotéis, empregos,…) gerando um contexto terrível de inúmeras injustiças e atropelos aos direitos humanos por discriminação racial.

 
Natural de Atlanta, filho de um pastor Baptista e uma professora, Martin Luther King desde muito cedo revelara apetência para a eloquência. Tendo concluído com distinção o doutoramento em Teologia na Universidade de Boston, exercia também o seu ministério de pastor na Igreja Baptista da Avenida Dexter em Montgomery desde 1954. A quebra do anonimato de Martin e a sua missão de profeta começou a 1 de dezembro de 1955.
 
Nesse dia, entrou num autocarro de Montgomery uma digna senhora costureira afro-americana, Rosa Parks. Exausta, vendo o autocarro cheio, decidiu sentar-se logo na fila dos primeiros dez lugares. Enfrentando a fúria do motorista que a insultava e ameaçava por ocupar um dos primeiros lugares, Rosa permaneceu firme e em silêncio até a polícia arrancá-la à força do autocarro e prendê-la como uma criminosa.
 
Fora a gota de água para a comunidade negra de Montgomery, saturada de tanto racismo e discriminação. Os líderes ativistas negros que lutavam pelos direitos dos afro-americanos da cidade viram em Martin um jovem erudito e modesto, capaz de inspirar a sua comunidade com moderação, sem exaltar ânimos nem levantar ondas. No melhor dos sentidos e de forma inesperada enganaram-se na escolha.
Na noite do seu primeiro discurso, temeroso, o jovem Martin orou uns minutos antes, e inspirado pelo Espírito Santo – atestam os testemunhos desse dia – proclamou um discurso que moveu a multidão a abalar literalmente as vigas que sustentavam o teto com clamores de júbilo e de esperança:
 
«Sabem, meus amigos, chega uma altura, chega uma altura em que as pessoas ficam cansadas – cansadas de serem segregadas e humilhadas, cansadas de serem pisadas pelos pés de ferro da opressão. (…) Se estamos errados então o Supremo Tribunal desta nação está errado! Se estamos errados então Deus Todo-Poderoso está errado! Se estamos errados, então Jesus de Nazaré não passava de um sonhador utópico e nunca desceu à terra! Se estamos errados então a justiça é uma mentira!
 
Se protestarem com coragem e todavia com dignidade e amor cristão, quando os livros de História forem escritos em futuras gerações, os historiadores terão de parar e dizer: Existiu uma raça de gente, gente negra, de cabelo anelado como lã e tez negra, de gente que teve a coragem moral de defender os seus direitos. E desse modo injetaram um novo significado e uma nova dignidade nas veias da civilização.»
 
Tratava-se apenas do princípio de um milagre…
 
Martin, eleito líder do Movimento para o Progresso de Montgomery (MIA), reuniu-se com a empresa de autocarros e representantes da Câmara Municipal para exigir o fim da discriminação nos autocarros da cidade, o pedido de contratação de motoristas negros e maior cortesia por parte dos atuais motoristas. Nem a Câmara nem a empresa cederam a qualquer das exigências de Martin.
Entretanto uniu a comunidade afro-americana e promoveu um boicote aos autocarros. Neste movimento insólito de solidariedade, muitos responderam à altura do desafio: King conseguira reunir cerca de duzentos voluntários que disponibilizavam os seus veículos (automóveis, táxis e camionetas de várias igrejas da cidade). Em retaliação os polícias da Câmara faziam operações stop aos carros de boleia e multavam-nos por detalhes insignificantes. Os patrões castigavam e até despediam os seus funcionários afro-americanos quando chegavam atrasados ao trabalho. Mas Martin mantinha a sua comunidade unida, alimentava-lhes esperança e determinação.
 
O sucesso de Martin consistiu em pôr em prática o princípio evangélico da não-violência, inspirado pelo movimento de resistência pacífica de Mahatma Gandhi. Diria ele mais tarde: «para mim, cedo se tornou claro que a doutrina cristã do amor, posta em prática pelo método da não-violência de Gandhi, era uma das armas mais poderosas de que o Negro podia dispor na sua luta pela liberdade».
 
Treinava grupos para reagirem pacíficamente face às provocações das autoridades racistas. Dizia: «trata aqueles que te desprezam como entidades sagradas» e lembrava que havia um objetivo maior por detrás deste boicote, acrescentando: «o objetivo é a reconciliação; o objetivo é a redenção; o objetivo é a criação da comunidade dos bem-amados»; «continuaremos a protestar com o mesmo espírito de não-violência e de resistência passiva, usando a arma do amor».
 
Após um atentado falhado à bomba que destruiu a sua casa; depois de várias ameaças à vida, Martin demonstrou uma resiliência formidável que rapidamente se espelhou em toda a comunidade negra de Montgomery. A mentalidade racista dominante na cidade levou à rua os Ku Klux Klan para aterrorizarem as famílias e demoverem-nos do boicote. Mas, pela primeira vez, ninguém se escondeu em casa com medo dos capuzes brancos e as cruzes em chamas. Pelo contrário, as pessoas de ambos os lados das ruas colocaram-se diante dos seus alpendres, varandas, janelas e de portas abertas, enfrentando de cabeça erguida e com dignidade o cortejo do Klan. Então, o que estava previsto ser um ato terrorista acabou como um número de circo e humilhação do Klan.
 
Martin fora detido só por uma patética multa de trânsito. Além disso, o Grande Júri do Condado de Montgomery ditou que todos deviam cumprir uma antiga lei do Estado antiboicote. Apesar da detenção de mais de duzentas pessoas, o movimento continuou. Martin foi acusado de chefiar um boicote ilegal e condenado a pagar 500 dólares de multa ou 386 dias de prisão. Ele e a sua equipa recorreram da decisão e apelaram ao Tribunal Constitucional.
 
No meio de detenções, ameaças, humilhações e meses muito difíceis, a 13 de novembro de 1956 o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais as leis de segregação dos autocarros. A Câmara e a empresa não tiveram outra alternativa senão satisfazer todas as exigências do MIA. A justiça e salvação chegaram a Montgomery pela mediação de Martin. A partir daí choveram pedidos de ajuda de várias comunidades locais e outros estados americanos e a sua fama disseminou-se pelo mundo.
Dois anos depois, acabaria por confessar numa entrevista ao New York Post: «Francamente, estou terrivelmente preocupado. Cheguei ao topo aos vinte e sete anos e agora tenho pela frente uma dura tarefa. Toda a gente vai ficar à espera de me ver tirar coelhos da cartola até ao fim dos meus dias».
 
King mal imaginara ainda que faria pular uma multidão de coelhos da cartola…
 
 
Bibliografia: «Eu tenho um sonho. A Autobiografia de Martin Luther King Júnior», Clayborne Carson (org.), Coleção Vidas, Bizâncio, Lisboa, 2003

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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