Carta I
Querida Mãe,
Por vezes não sei quem sou.
Os passos que dou parecem-me incertos, inseguros, inúteis. Quando penso ter certeza dos passos presentes, dos passos futuros, quando corro pelo caminho tentando que as montanhas me elevem, quando tento loucos saltos neste trilho encaminhado pela terra efémera, caio. Quando da montanha se cai, vi, o longo érebo escuro que cega a vida. É funda a escuridão.
Os meus olhos olham, mas nada veem. Eles passam inquietos voando por cima de uma massa homogénea a que chamamos coisas. Aí procuram algo que não existe, para aí são sugados por uma força traiçoeira. Acredito no que olho, mas não vejo o que acredito. Estes olhos querem ver dor e sofrimento, desgraça e fama decaída, querem ver inglórias gentes, querem ver cimento, querem mostrar-me a violência e a pequenez dos meus irmãos. Estes olhos são a maior ficção, a mais fantasiosa pintura do ser.
Diz-me, querida Mãezinha, porque me disseram que os prados eram verdes pintalgados de esperançosas cores e eu vejo cinzento? Por que razão me disseram que os azuis do céu eram oceanos pairantes, navegadores audazes embarcados em doces nuvens, e eu vejo um vazio? Porque me tentaram mentir bradando que as montanhas são gigantescos corpos repousantes de heróis que viveram noutra era a lutar pela vida, dando agora o seu quente sangue às subterrâneas cidades, e eu vejo um obstáculo? Porque me dizem que o filho de Deus tem o Espírito, porquê? se eu vejo rochas ambulantes, pedregulhos vestidos, estátuas de mármore que fazem barulho?
Talvez entenda a razão pela qual acontecem estas coisas. Penso que me falta ouvir-Te.
Quando Te ouço sei quem sou.
O olhar que me deste, quando me acolheste nos Teus divinos braços, via mais. Contigo, nada é uma coisa sem sentido, nada é nada. Contigo, vejo gente que vive, gente que sofre com a vida, gente que vive o sofrimento, gente que sorri sem razão, gente que sem razão anda, gente que tem história, gente que é um mito falante, gente que faz rir, gente que sonha, gente que pensa, gente que faz, gente! Gente! Gente! Vejo-os, minha Mãe, como as criancinhas com quem brinquei quando brincava. Vejo-os habitando um mundo mágico e desconhecido, cheio de novas descobertas, cheio de bondade, cheio de coragem, cheio de épicos desafios por vencer, cheio de batalhas, cheio de perdões. Esse mundo que vejo, é todos os dias uma nova obra de arte. Nunca uma cor é igual ou um cheiro repetido. Nunca uma matéria se envolve no nosso corpo com a mesma atitude. Este mundo, esta casa que nos deste, quando Te ouço, é uma alma.
Os passos que dei por Ti, minha Mãe, não os entendia, não os queria até, não os apressava, não os raciocinava, não duvidava deles, mas sentia-os. Ó querida Mãe, tão bom que é ser levado pela mão como quando fui criança! Só tinha de Te seguir. Tu mostravas sempre o caminho. Porque deixei de Te dar a mão? Talvez pelo medo que me faziam os outros olhares, pelo meu medo de não viver tudo, porque me fiz querer coisas más. Pedi-te a herança e parti. Voltei e abraçaste-me, guiaste-me de novo. De novo, dei o coração à minha Mãe. É assim que me queres? Queres-me a ser levado nos Teus imaculados passos, nos Teus caminhos puros? Eu quero, mas habituei-me a largar da Tua mão e os teus caminhos não os consigo fazer sem Ti. Não me deixes. Mesmo que, como criança amuada, possa ficar com o sobrolho carregado, de bracinhos cruzados e de boca retorcida, mesmo assim, olha por mim sabendo que não sei querer.
Minha mãe,
Quando te ouço sei quem sou.
Sou eu.