A antropologia da água

Crónicas 24 outubro 2019  •  Tempo de Leitura: 8

Na antiguidade, quer pagã, quer judaica, a ÁGUA é um símbolo forte de epifanias da divindade. No contexto bíblico, concretamente, a água é um símbolo paradoxal, usada com dois significados opostos: morte e vida; o demoníaco e o divino, a perdição e a salvação.

 

No sentido pejorativo, a água representa o caos, o abismo profundo, o mundo subterrâneo onde habitam as criaturas das trevas. O relato do Génesis narra que no princípio não havia nada senão as águas caóticas e informes, algo semelhante a um enorme oceano. Na cultura hebraica, o mar é a materialização dos domínios infernais. Enquanto na Grécia, o tenebroso mundo dos mortos (o Hades) localizava-se num submundo marcado pelo elemento do fogo, para Israel, o mundo das trevas é o fundo do mar.

 

Os hebreus acreditavam que nas profundidades do oceano habitavam os monstros inimigos de Deus (Job 7,12). Segundo o mito hebreu, o mais formidável de todos os monstros marinhos era Leviatã, semelhante a um dragão invencível, desafiador da majestade de Deus (Job 40; 41,18-21). Por exemplo, no livro de Daniel, o profeta narra a visão de quatro demónios monstruosos que desafiam o poder de Deus, e todos eles emergiam do mar (Dn 7; Ap 13,1). Apesar de tudo, Deus também é o Senhor do mar (Is 50,2; Sl 65 (64); Prov 8,29; Job 9,8) e por isso mantém lá submissas as forças infernais que o desafiam.

 

Contudo, no mar pereciam os pescadores e os navegantes vítimas das tempestades. Para um judeu, o mar é símbolo do poder da morte, um poder imenso que nenhum homem consegue superar. Portanto, se no Novo Testamento vemos Jesus a caminhar sobre o mar (Mt 14,22-36; Jo 6, 16-24) e acalmar a tempestade do mar (Mt 8, 23-27), isso significa que Ele é o primeiro Homem a vencer as forças do Maligno, sinal do seu poder messiânico, do poder do Espírito que o habita.

 

A água é também um elemento teofânico na bíblia que revela a presença de Deus e a sua ação salvífica. Os judeus recorriam a alguns ritos de purificação. João Baptista pregava um Baptismo de arrependimento no Jordão para preparar o povo para a vinda escatológica do Reino de Deus. Porém, o Baptismo de Jesus é diferente, porque quando emerge do rio Jordão o Céu abre-se e desce sobre ele o Espírito Santo (Mt 3,16). O seu Baptismo não é de purificação, mas é o Baptismo no Espírito. Jesus possui o Espírito em plenitude para cumprir a missão de se tornar o Messias.

 

Uma antiga profecia relata que no final dos tempos Deus haveria de derramar o seu Espírito sobre toda a criatura como uma torrente de água (Is 44, 3; Ez 36,25-27). Na bíblia a água viva representa sempre água corrente (ao contrário da água parada ou salobra), a mais doce, a mais fresca e límpida das fontes. Por exemplo, nos salmos é metáfora da presença de Deus: “Como suspira o veado pelas águas vivas, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus.” (Sl 42,2).

 

Nos evangelhos, Jesus é como uma fonte dessa água viva, portador do Espírito para o derramar sobre todos os homens e mulheres, aqueles que decidem crer e continuar a sua missão messiânica. Por isso no evangelho de João Jesus diz: “Quem tem sede venha a mim e beba. Como diz a Escritura: «das suas entranhas correrão rios de água viva»” (Jo 7, 38-39). Outra passagem ilustrativa do dom do Espírito como torrente de água viva é o encontro de Jesus com a samaritana:

 

“Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele haveria de dar-te água viva!» Disse-lhe a mulher: «Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo... Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?» Replicou-lhe Jesus: «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede, mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há-de tornar-se nele numa fonte a jorrar para a vida eterna.»” (Jo 4, 10-13).

 

O Espírito Santo é dador de Vida. O Cristão baptizado tem como missão tornar-se água que sacia muitas sedes (sede de esperança, de sentido, de amor, de justiça, de paz…). Inspirado pelo Espírito, ele converte-se numa torrente de água que refresca, sacia todos quantos se cruzam com ele(a). A nossa vocação é sermos portadores e dadores de vida, e vida em abundância (Jo 10,10), tal como um rio caudaloso de água fresca que repentinamente irrompe num deserto.

 

Na Igreja primitiva o baptismo consistia num banho de imersão. Os baptistérios eram piscinas onde mergulhavam os catecúmenos. A imersão simbolizava a morte do homem velho, da antiga vida marcada pelo pecado e a ignorância. Seguidamente emergiam da água, como num novo parto, gerados pelo poder regenerador do Espírito Santo, para renascerem agora à imagem de Jesus Cristo. Assim S. Paulo o ilustra:

 

“Mas agora rejeitai também vós tudo isso: ira, raiva, maldade, injúria, palavras grosseiras saídas da vossa boca. Não mintais uns aos outros, já que vos despistes do homem velho, com as suas acções, e vos revestistes do homem novo, aquele que, para chegar ao conhecimento, não cessa de ser renovado à imagem do seu Criador.” (Col 3, 8-10).

 

Portanto, permanecer imerso na água é estar envolvido, revestido dela. Nessa perspetiva, a água simboliza Cristo e a sua Vida. S. Paulo também afirma que o baptismo é encontrar-se revestido de Cristo (Gal 3,26). É este o grande símbolo do mergulho na água: participar do mistério da morte e da ressurreição de Cristo. Processo que dura toda a vida, desafia o baptizado à conversão permanente. Trata-se de escolher a morte progressiva do “homem velho” para, na abertura ao Espírito Santo, renascer como “homem novo”.

 

“Ignorais que todos nós, que fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos baptizados na sua morte? Pelo Baptismo fomos, pois, sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova.” (Rom 6, 3-4).

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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