Antropologia da eleição

Crónicas 30 janeiro 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Desde sempre foram atribuídas propriedades especiais ao azeite e óleos: fortalecimento e tonificação dos membros e músculos dos atletas ou guerreiros antes do combate; tratamento de feridas e infeções; limpeza corporal e base para perfumes. Na cultura bíblica a unção é símbolo da eleição para realizar uma missão especial, nomeadamente os reis, profetas e sacerdotes. A unção era também usada para sacralizar objetos ou artefactos com funções sagradas como era o caso do Tabernáculo do Templo de Jerusalém (Ex 40,9).

 

No Antigo Testamento todos os reis de Israel eram submetidos à cerimónia religiosa da unção de azeite de oliveira com alguns ingredientes aromáticos (mirra, canela, aloé e acácia). O azeite era cuidadosamente conservado e guardado num recipiente no Templo de Jerusalém (1 Re 1, 39; 1 Sam 10, 1; 16, 1.13). Geralmente, durante a unção pronunciavam-se as seguintes palavras: “Isto diz o Senhor: Eu te consagro rei de Israel do povo do Senhor” (2 Re 9, 3.6). Após a primeira parte da coroação no Templo, o Rei apresentava-se publicamente ao povo que aclamava: “viva o Rei!” (2 Re 11, 12), e depois a sua entronização concluía-se no palácio real (2 Re 11, 19).

 

Era um acontecimento fundante e festivo que inspirava uma grande esperança em toda a nação. A unção do azeite consistia no símbolo visível do derramamento do Espírito de Deus sobre o entronizado. A unção constituía o ritual da doação do Espírito: Yahvé transmitia poder divino ao seu eleito para governar em Seu nome todo o povo de Israel. É importante perceber que de acordo com a mentalidade judaica não é o rei que governa, mas o próprio Deus, único Soberano do seu povo. O ungido é, portanto, um mediador privilegiado. Por adoção divina torna-se o Filho de Deus (título dado aos reis de Israel). Neste ato de doação do Espírito, Deus atuava por mediação do seu ungido - investido de uma autoridade, sabedoria, poder e vontade divinas para realizar um projeto salvador.

 

Os evangelistas apresentam Jesus como o Ungido (proveniente do hebraico “Meshiah”= Messias cuja tradução grega é “Christos” donde derivam “Cristo” ou “crisma”), pois nele se cumprem todas as profecias definitivas de salvação: logo no início do evangelho de Mateus, o anjo Gabriel anuncia a Maria que dará à luz um filho, o “Emanuel” de Isaías (Mt 1,23). Nasce em Belém (cidade de Jessé, pai de David) devido ao recenseamento de César Augusto (Lc 2,2). No mesmo evangelho, Jesus é Ungido por Deus no cumprimento de outra profecia de Isaías:

 

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Noticia aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” (Lc 4,18-19 // Is 61, 1-2).

 

Finalmente, no evangelho de João Jesus entra em Jerusalém montado num jumento, revelando-se ao povo como o Messias humilde e pacífico da profecia de Zacarias (Jo 12, 12-15).

 

Portanto, o baptizado (ou crismando) quando é ungido em óleo significa que fica revestido do Espírito de Cristo. A unção é o sinal da ação do Espírito Santo que o molda à imagem de Cristo para cumprir as promessas de redenção, paz e justiça. Enquanto outros símbolos representam diversas formas do Espírito Santo atuar, o óleo simboliza o próprio Jesus constituído Messias. Isso significa que pela unção baptismal assumimos a sua identidade e Missão. Tornamo-nos “outro Cristo” – não de forma automática, mas por adesão vital e entrega quotidiana a esta Missão. Unidos pelo mesmo Baptismo, todos formamos um Corpo Messiânico, uma comunidade de Salvação. Pela unção dos óleos somos destinados a tornarmo-nos:

 

- Profetas (portadores da Palavra de Deus: Palavra de Esperança, vida, Verdade e Salvação),

- Sacerdotes (mediadores da presença de Deus: o mundo pode testemunhar na nossa existência e nas nossas opções de vida que Deus realmente se encontra entre nós),

- Reis (Servidores da humanidade: Jesus sempre disse que o maior no Reino é aquele que serve (Lc 22,26). O lava-pés é a prova que o Reino de Deus é uma soberania de serviço a todos, a começar pelos pobres, os mais débeis e marginalizados),

 

Como Jesus e com Ele, somos convocados a viver uma Vida messiânica, derradeira vocação dos baptizados.

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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