A Parábola dos Talentos (I) – Era uma vez um administrador de dons…
«Dai de Graça, o que de Graça recebeste» (Mt10,8), diz assim Jesus. Noutras páginas tantas do evangelho, acrescenta: «Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço» (Lc 6,38). Ao longo da minha meditação sobre os evangelhos, constato que as parábolas de Jesus são eixos ou pivôs de ligação de uma rede. Uma autêntica tapeçaria de sentido e novidade que nos envolve por repetição.
Os evangelhos repetem, repetem e não se cansam de repetir até à exaustão eventos, máximas e princípios patentes nas ações e palavras de Jesus. Não os apresentam dispersos em retalhos, mas como uma autêntica malha orgânica de boas notícias que se interligam em pivôs para nos aproximarem do Amor de Deus.
Estou convencido que a parábola dos talentos constitui o grande pivô do dom. Do princípio ao fim, toda ela transpira o dinamismo da gratuidade.
- «O Reino de Deus também é semelhante a um homem que, partindo em viagem, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens» (Mt 25,14): eis um proprietário que CHAMA cada servo junto de si, num ato de intimidade e CONFIA – ato desprovido de qualquer materialismo ou contrato. Sem cláusulas nem termos, simplesmente DEU-LHES o que possuía! ENTREGOU incondicionalmente a administração das suas propriedades. Assim é o nosso Deus: CHAMA, CONFIA e ENTREGA os seus dons. Esta é a chave de leitura ao longo da parábola. Toda a narrativa seguinte constrói-se a partir desta premissa.
- «A um DEU cinco talentos, a outro dois e a outro um» (Mt 25,15a): No séc. I um talento correspondia a uma medida de dezenas de quilos em ouro. Joachim Jeremias, especialista em estudos do Novo Testamento, afirmou que um talento seria equivalente a 10000 denários! Embora fosse um valor variável, um denário por si só valia na época o salário de uma jornada (um dia de trabalho). Portanto, um talento correspondia a uma quantia milionária, uma soma exorbitante. Mais do que qualquer camponês poderia acumular numa vida. Pois assim é o dom de Deus…
- «…a cada qual conforme a sua capacidade; e depois partiu» (Mt 25,15b): da parte de Deus o dom não tem limite. Somente a nossa recetividade lhe impõe fronteiras. Daí, um receber cinco, outro dois e outro um. O evangelho questiona-nos: quantos “metros cúbicos” de dom transbordante és capaz de ACOLHER? A que tamanho e volume podes dilatar o teu coração? E, de súbito, é quase inevitável não saborear o eco de outra frase de Jesus: «Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem não corroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração» (Mt 6, 20-21).
A expressão «depois partiu» indica que agora este senhor saiu de cena. Sumiu-se para deixar espaço e protagonismo aos servos. Servos que agora se tornam senhores de talentos em pleno direito, para deles dispor como lhes bem aprouver. É uma passagem de testemunho.
Salto agora um ponto importante que prefiro partilhar na próxima crónica, passando de imediato ao versículo 19:
- «Passado muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e pediu-lhes contas» (Mt 25,19): encontramo-nos diante de um marco onde a interpretação tem de jogar um papel decisivo. Qualquer parábola é sempre uma comparação e isso força-nos a demarcar uma linha separadora entre o fim do sentido literal do texto e o início de outra realidade onde a parábola nos quer conduzir.
A partir daqui só podemos decifrar duas imagens narrativas em sentidos opostos: a primeira, de um senhor que age segundo o próprio interesse. A segunda, de um senhor que age generosamente. Na primeira imagem o senhor decide entregar os seus bens aos servos apenas com o intuito de restituir com juros o que lhe pertence. Nada de novo aqui…um rico proprietário movido pela ganância. Mas Deus afinal dá generosamente em função de nós para depois exigir restituição em função de si? Isso não faz qualquer sentido. Mas infelizmente é esta a imagem que persiste na maior parte das interpretações superficiais e levianas da parábola, que são sempre contraditórias pois representam a antítese do dom e a antítese de Deus.
A segunda imagem exige um olhar profundo, bem mais revelador e grandioso: a própria expressão “pediu-lhes contas” no texto original começa com uma palavra grega que denota expectativa ou confirmação. Na verdade este senhor não está a fazer um ato contabilístico, pois se prestarmos atenção ao início da parábola, o que foi dado não pode ser agora objeto de coleta. Ele não pretende reaver nenhum lucro. Em momento algum do texto este senhor pede reposição de rendimentos. Não encontramos um verbo, substantivo ou expressão que mencione alguma transação financeira.
Na verdade, este administrador deseja CONFIRMAR se cada um dos servos aprendeu a administrar os dons, TAL COMO ELE os administra. Terão eles aprendido o ofício do dom, tal como o seu mestre? Será que experimentaram a mesma alegria do seu senhor no ato de doarem e se darem? Confrontamo-nos com um senhor inquieto, possuído por uma ansiedade e uma esperança, que em nada se relaciona com a cobiça ou um ajuste de contas. A sua “contabilidade” é outra: anela pela CONFIRMAÇÃO E A FÉ de que os servos, uma vez agraciados pelo dom, SEJAM AGORA COMO ELE É!