Que armas são estas?
Velas e flores. Cânticos e preces, súplicas e louvores. Multidões em silêncio. Lágrimas contidas, mas também choradas, derramadas pelos que morrem e pelos que vivem. Por todos os que sofrem e, em especial, por aqueles que andam mais abatidos ou sem esperança. Mas também pelos que se alegram por graças recebidas.
Na semana em que se celebra o 13 de Outubro em Fátima, dia em que Joana Carneiro dirige a Orquestra e o Coro Gulbenkian em directo para o recinto, no concerto solene que encerra as celebrações oficiais do centenário das Aparições, o movimento já se faz sentir. Muitas pessoas estão a caminho e prevê-se grande afluência na noite de 12 e no dia 13.
Nas cidades, vilas e aldeias de norte a sul do país multiplicaram-se as iniciativas para comemorar este ano jubilar, e as celebrações estenderam-se aos quatro cantos do mundo, aquém e além-mar. Nossa Senhora de Fátima pode ser um enigma para uma grande parte da humanidade, mas a fé que convoca e a devoção que gera em todas as latitudes são expressivas e interpeladoras.
Ao longo deste ano foi possível ver a forma dedicada como os crentes devotos se encaminharam para Fátima, falaram de Nossa Senhora e do lugar que ela ocupa nos seus corações. O Papa Francisco disse tudo em duas palavras, quando veio rezar a 13 de Maio com os portugueses: “Temos Mãe”.
Este sentimento maternal enche os crentes de certezas, mas também desperta curiosidade entre não-crentes. Muitos pronunciaram-se sobre Fátima pela primeira vez e houve filmes, reportagens e testemunhos de uma delicadeza extrema. Gente a quem custa acreditar em aparições e milagres, mas é sensível à sensibilidade dos outros e respeita o espírito sagrado do lugar. Pessoas que provavelmente percebem com mais facilidade que o maior milagre é o da transformação interior de cada um.
Nesta lógica, porventura mais humana e tangível, muitos compreendem o impacto da fé e o poder da oração no concreto da vida. Percebe-se melhor o sentido da conversão quando ele revela uma mudança de atitude, uma abertura de coração, uma capacidade de elevar o olhar acima das circunstâncias, uma esperança renovada e um espírito mais acolhedor ao que nos transcende.
Quem é Deus? Quem é o pai desta mãe? Como é, como fala e o que nos diz, mesmo quando cala? No silêncio murmurado da Capelinha das Aparições, percebemos um pouco melhor quem é este Deus dos grandes silêncios e de todos os mistérios, o Deus das surpresas e dos encontros, o Deus que nunca se explica a si mesmo nem se deixa aprisionar em falsas imagens, mas estabelece com cada um uma relação individual (mesmo que seja para o rejeitar). Não compreenderemos tudo, nunca, mas rezamos com homens e mulheres de todo o mundo as suas orações, proferidas em línguas estrangeiras com métricas que nos são estranhas e, afinal, tudo nos soa familiar. Os que creem sentem que Nossa Senhora, que guarda tudo no seu coração, ouve todos e dá a cada um a sua protecção.
Procuramos o invisível nos lugares de culto onde caminhamos, visíveis, aos olhos de Deus e dos homens. Precisamos de conhecer as profundezas da alma, onde o mundo exterior e interior se tocam. Somos multidões, mas avançamos sozinhos, num movimento perpétuo que revela o maior e mais elevado dos altares onde nos podemos encontrar.
Pomos os joelhos na terra quando queremos cuidar dela ou quando estamos próximos do essencial, num acto de amor e devoção. Somos como fiéis jardineiros que cuidam dos seus jardins, dobrados sobre a sua rosa, tão atentos às pétalas como aos ramos, tanto aos caules como às raízes.
O impulso de caminhar de joelhos para agradecer todo o bem recebido também nasce desse cuidado e dessa atenção, mas trespassados de muita dor, de sofrimentos desmedidos e inexprimíveis. A promessa de pagar de joelhos uma cura ou salvação surge na oração mais dolorosa de todas, também ela rezada de joelhos quebrados no chão.
A igreja não quer tamanho sacrifício e apela a que ninguém o faça, mas também não pode impedir quem já sofreu tanto de concluir assim, com gratidão, a última estação da sua Via Dolorosa.
João Catarino, ilustrador não crente que desenhou Fátima em prodigiosos sketches, disse um dia: “Em Fátima podemos encontrar todos os portugueses, porque realmente vão lá pessoas de todas as origens, raças, gerações, condições e estratos sociais. Ali encontramos o estivador e o piloto de aviões, o mais pobre e o mais rico, entre os ricos, os novos e os velhos, os doentes e os que nunca tiveram problemas de saúde. Se formos a um estádio de futebol ou à praia, não podemos dizer o mesmo, porque está tudo mais estratificado. Em Fátima, não. Estamos lá todos!”
Em Fátima estão todos e há de tudo. Do incrível folclore do merchandising ao comércio mais antiquado, da arquitectura mais inconcebível às fabulosas portas do Calapez, a relação com o espaço está muito congestionada e nem sempre é agradável ou acolhedora. Fátima não é um lugar fácil, e embora a mensagem central de Nossa Senhora seja a paz no mundo, muitos não conseguem fazer as pazes com um lugar de culto estética e arquitectonicamente tão confuso, onde o povo se junta e mistura de forma ora ruidosa, ora silenciosa.
Para quem aprecia a arquitectura recentemente acrescentada e não ficou com aversão à nova Basílica, a luz e o branco deste espaço iluminam tudo à volta. As sombras desvanecem-se na amplitude do terreiro de entrada e saída, o sol torna tudo mais claro e, mesmo quando chove ou há nuvens no céu, o contraste imaculado da pedra reflecte o que sentimos e somos: vivemos divididos porque trazemos em nós todas as contradições e incontáveis desejos, os sonhos mais elevados e a memória das experiências mais terrenas, alegrias indizíveis e tormentos inexprimíveis, mas tudo em nós volta a ficar mais inteiro e uno quando atravessamos portas sagradas. Estas ou outras, de outras crenças.
Todas as ruas e recantos de Fátima são em si mesmo um templo. Ou, melhor, o átrio de um templo universal onde se cruzam todas as nacionalidades e raças. Cada pessoa que ali vai passear ou rezar já tem, ou passa a ter, uma história particular com este lugar. Nossa Senhora de Fátima passa a ser também um bocadinho sua, seja porque lhe suplicaram ajudas, lhe queimaram velas ou a olharam em silêncio, sem palavras.
Porque todos temos uma história e todos estamos a caminho (mesmo que seja no sentido oposto a Fátima), faz agora mais eco o musical que está em cena no Estoril, na Boa Nova, e também celebra o fim do Centenário das Aparições. “A Caminho”, com guião de Manuel Arouca e encenação de Pedro Ribeiro, que veio directamente de Londres, da Royal Opera House, para pôr de pé este teatro musical, não conta a história de Fátima, mas representa e canta algumas histórias reais de pessoas autênticas a quem Fátima mudou por dentro.
Sabemos que as histórias dos outros fazem eco na nossa própria história e, talvez por isso, este musical seja tão forte e tão impressivo. Da vida nos cabarets de Lisboa, nos anos 40, à guerra colonial, passando por episódios insólitos e equívocos divertidos, o musical “A Caminho” revela factos perturbadores e pessoas inspiradoras. No quadro da guerra e perante um batalhão dizimado onde jazem mortos todos os seus amigos, um homem desesperado olha para o céu antes de pôr fim à sua vida e pergunta que sentido faz uma guerra assim. Prostrado, de joelhos, retira do bolso um ‘amuleto’ que lhe deram em Fátima.
“Que arma é esta?” interroga-se.
Este homem chama-se Robert Faricy e não se matou. Converteu-se, estudou, tornou-se padre jesuíta, é professor de Espiritualidade e professor emérito na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Autor de 30 livros, Robert Faricy deu agora autorização para que contassem a sua história neste musical que celebra o fim do ano jubilar. A história dele é apenas uma, mas há outras.