Da Prudência à Coragem
Estávamos a poucas horas da inauguração dos painéis da autoria da Ilda David quando o Manuel, sentado diante da imagem de S. Vicente de Paulo, de caneta esmeril na mão disse, no seu habitual tom despreocupado: «o que é preciso é fazer sem hesitar». Eu sabia o que estava em causa e hesitava… Se aqueles nomes ficassem mal, a marca defeituosa naquele lugar nobre, no nosso presbitério, seria um sinal de uma má estratégia. Receava as críticas… naquele momento era quase como se tivesse de atravessar um desfiladeiro sobre um cabo de aço. Tudo podia correr irremediavelmente mal. Fechei os olhos e o som da máquina a gravar a pedra deu sinal de vida. Lá estava o Manuel, paciente artista, sem hesitação, a desenhar o primeiro nome de uma lista de beneméritos, sobre a pequena pedra de ónix C R I S T... Depois, envolto numa nuvem de pó, olhou para o grupo que assistia e obteve a aprovação. E continuou.
Esta imagem vem-me recorrentemente à memória - «é preciso fazer sem hesitar» - no exercício das minhas atividades pastorais. De algum modo, ela despertou em mim uma verdade adormecida, um desejo de liberdade escravizado por medos infundados que me impediam de agir, em alguns contextos, de forma determinada. Ainda hoje a expressão «sem hesitação» continua a fazer eco quando estou perante certos desafios. Com efeito, se eu ceder à tentação do medo, como poderei servir a comunidade? E se meço todas as palavras, se calculo todos os gestos e passos, onde está a espontaneidade? Quando assim acontece, estamos perante uma pastoral que se pode considerar hesitante. A pastoral hesitante é híper-vigilante porque parte do pressuposto que o pior está por acontecer. Ela teme a novidade porque teme as consequências imprevisíveis das palavras e dos gestos originais.
Na pastoral hesitante a prudência sobrepõe-se à coragem. É uma prudência em grau extremo, a ponto de manter o sujeito de mãos e pés atados. «A prudência está em toda a parte. A coragem em lado nenhum», disse um dia um irmão sacerdote, num pequeno desabafo, cansado das prudências excessivas de quem, por medo, não agia. Na verdade, se a comunidade dos discípulos de Jesus procura estar em sintonia com as «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem» tem de assumir muito mais do que uma atitude prudente.
Em tudo, Jesus, o pobre de Nazaré, é referência e modelo. Se Ele fosse apenas prudente e não corajoso nunca teria deixado que uma mulher de má vida lhe lavasse os pés diante de “pessoas de bem”, nem teria defendido a adúltera contra os líderes religiosos, nem teria violado os preceitos culturais, as leis “divinas” e as tradições que o impediam de se aproximar, falar e tocar um leproso. Não, não foi a prudência. Ele foi imprudentemente corajoso! Um pouco mais tarde, S. Paulo (a quem devemos imitar…) dizia também «Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e de sabedoria» (2 Tm 1,7). Será este espírito que abrirá novas portas e apontará para outros caminhos, diversos dos de outrora, e com toda a certeza, evangelicamente mais inspirados.