Emanuel
O senhor da antiga barbearia da minha terra é um despachado. Em quatro tesouradas avia o serviço enquanto se movimenta, de um lado para outro, a comentar as últimas notícias: «Sr. padre, isto não ficava assim. Se fosse na América, oh! Já estava preso». E prossegue. Sinto a navalha quase no pescoço e tenho de responder à súbita interpelação: «Não concorda comigo, sr. padre?». «Sim, sim, com certeza» - respondo-lhe com a respiração suspensa. Ao lado, afundado num velho sofá, o sócio do estabelecimento segue atentamente a conversa. Conheço-o desde que me lembro de entrar pela primeira vez para cortar o cabelo ainda adolescente. Na altura tinha a impressão que ele se esforçava por imitar o sócio principal, mas sem sucesso. Faltava-lhe sempre qualquer coisa: o ardor e a fluência da palavra, a desenvoltura de movimentos de braços e de pernas, o revirar dos olhos. Faltava-lhe ainda a vénia profunda, na despedida de cada cliente, depois de receber a gorjeta. Talvez por isso era evitado pela maioria da clientela, apesar de nos acolher com um sorriso sereno, como se fosse a mão estendida de um pedinte que nos tratava pelo nome. O contraste entre os dois não podia ser mais evidente: Um é a presença forte, o homem mais conhecido da freguesia, o especialista em todas as matérias, uma espécie de pregador e confessor profano. O outro apenas uma sombra, um mapa riscado, um artista envergonhado cujo nome quase ninguém conhece.
Na passada quarta-feira, para não ter de esperar, pedi-lhe que me cortasse o cabelo. Acedeu com satisfação, mas permaneceu num silêncio prolongado. Ouvi a tesoura abrir e fechar com rapidez. A voz de fundo do jornalista na TV era praticamente anulada pelo discurso grave e generoso do sócio principal, em conversa animada com outro cliente. «É um tipo deveras sedutor», pensava anestesiado com o desembaraço do homem e, de repente, aquele que tinha a minha cabeça entre mãos disse-me, com os olhos negros fixados em mim: «O sr. padre tem uma mancha escura na testa». Respondi-lhe que tinha sido da celebração das cinzas. «Cinzas?», perguntou-me com ar curioso. Foi então que pela primeira vez encetei um diálogo ameno com ele. Falei-lhe do ritual que dá inicio ao tempo quaresmal e dos propósitos que fazemos durante este tempo, a prática da oração, o dever da esmola e a renúncia constante a tudo o que nos afasta do projeto de Deus. «Lembro-me desse tempo. Ainda não trabalhava nesta casa», replicou, e logo mergulhou numa atitude meditativa. O sócio principal ainda dissertou por uns instantes sobre o tema, mas logo se deteve no assunto do dia que o jornalista apresentava.
O serviço terminou. O homem permanecia contido nas palavras e nos gestos. Divinamente discreto. O proprietário vigiava-nos através do espelho, de secador na mão. Junto à porta, antes da ligeira vénia, perguntei-lhe pelo nome. «Emanuel» disse-me. «Até breve, Sr. Emanuel. Talvez na Páscoa». E o nome Emanuel veio comigo, pelo caminho, como se fosse já uma imagem e um desafio para esta quaresma. «O pão-nosso de cada dia…». Sim, em cada dia, nesta quaresma, acolher o Emanuel, presença de Deus subitamente revelada, nas muitas barbearias deste mundo.