AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE CRISTO NA CRUZ

Liturgia 30 março 2018  •  Tempo de Leitura: 20

O mais antigo manuscrito completo do Novo Testamento que chegou até aos nossos dias dá-nos a ler algo de muito curioso na cena da crucificação de Jesus descrita por Mateus. Antes do versículo que narra a morte de Jesus (“Jesus, gritando de novo com voz grande, deixou partir o espírito”), o precioso “Codex Sinaiticus”, produzido no reinado de Constantino (séc. IV), importa para o texto de Mateus uma frase da crucificação tal como ela é descrita no Evangelho de João: “E outro, pegando numa lança, trespassou-lhe o flanco e saiu água e sangue”. No Evangelho de João (19:34), o flanco de Jesus é trespassado pela lança já depois da sua morte; na versão híbrida da crucificação de Mateus (27:49) que lemos nos dois manuscritos mais antigos que nos transmitem os Evangelhos completos, Jesus é trespassado pela lança antes de morrer. Lendo a sequência tal como ela está registada nos antiquíssimos “Codex Sinaiticus” (manuscrito proveniente do mosteiro de Santa Catarina no Sinai, hoje guardado no Museu Britânico de Londres) e “Codex Vaticanus” (como o nome indica, parte do acervo da Biblioteca Vaticana), ficamos com a impressão de que o evangelista Mateus apresenta o trespassar do flanco de Jesus como causa direta da morte de Jesus.

 

No entanto, se perguntarmos a uma expressiva maioria de estudiosos internacionais do Novo Testamento se acreditam que Mateus escreveu o texto tal como ele se encontra nos dois manuscritos mais antigos do seu evangelho, a resposta será negativa. Para os estudiosos da história do texto do Novo Testamento, a passagem de Mateus em que Jesus é “joaninamente” trespassado pela lança constitui um indício de que, já no século IV, começara o processo de harmonizar os quatro evangelhos canónicos, de modo a tornar menos percetíveis as suas diferenças. O leigo nestas matérias estranhará o facto de os especialistas não considerarem autêntica a mais antiga versão conhecida de Mateus 27:49, mas é preciso ver que há outros fatores que influem nestas problemáticas, além da antiguidade. Como contrapeso da redação transmitida por estes dois manuscritos do século IV, podemos apontar o facto de um terceiro manuscrito ainda do século IV (o “Codex Bezae”) omitir essas palavras joaninas no Evangelho de Mateus; e o “Codex Alexandrinus” do século V (que haveria de pertencer, muitos séculos depois, ao rei inglês Carlos I) também nos dá a ler Mateus 27:49 sem o flanco trespassado pela lança. Aliás, se olharmos para a subsequente história textual de Mateus 27:49, veremos que a maioria dos mais de 1800 manuscritos de Mateus copiados antes da invenção da imprensa omite as palavras importadas de João. A tradução portuguesa de João Ferreira de Almeida, publicada em finais do século XVII, também as omite.

 

Do mesmo século XVII em que o “Codex Alexandrinus” foi parar às mãos de Carlos I e o português João Ferreira de Almeida traduziu o Novo Testamento, chega-nos um dos marcos mais fascinantes da vontade (tão irresistível quanto inconsciente) dos cristãos de harmonizarem entre si os quatro evangelhos no que toca à narração da crucificação de Jesus: trata-se da peça musical “As Sete Palavras de Jesus Cristo na Cruz”, composta na Alemanha pelo genial Heinrich Schütz em 1645. À semelhança do que aconteceria no cinema dos séculos XX e XXI em filmes sobre a vida e morte de Jesus (pensemos em Cecil B. DeMille ou em Mel Gibson), o texto da obra musical de Schütz junta frases tiradas dos quatro evangelhos, cosendo-as habilmente de modo a dar a ilusão de um pano único, isento de costuras. Deste modo, frases soltas tiradas de Mateus, Lucas e João são reunidas como se fossem peças de um puzzle que só juntas fazem sentido. E, na verdade, a ideia que a maior parte de nós faz da sequência de eventos no lugar chamado Gólgota, naquela Sexta-Feira Santa de há quase 2000 anos, é mesmo a de um puzzle formado a partir de peças que, na realidade, se fôssemos analisá-las de forma fria e objetiva, não encaixam umas nas outras.

 

Quem se dispuser a ler debaixo do microscópio os quatro relatos da crucificação e morte de Jesus nos quatro evangelhos canónicos verificará que nenhum dos evangelistas cumpre as nossas expectativas de encontrarmos tudo “certinho” como aprendemos na catequese, ouvimos em Schütz ou vemos no cinema. É somente em Lucas (23:34), por exemplo, que Jesus perdoa aos seus crucificadores: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”. Mas estas palavras, ausentes dos outros evangelhos, serão autênticas? O mais antigo fragmento do Evangelho de Lucas, um papiro do século III, omite estas palavras. Elas estão também ausentes dos já referidos “Codex Vaticanus” e “Codex Bezae”, ambos do século IV. Estão ausentes de traduções antiquíssimas de Lucas para siríaco e copta, o que prova que os tradutores se basearam em originais gregos em que Jesus, pregado na cruz, não proferia estas palavras a perdoar aos seus carrascos.

 

O Evangelho de Lucas (que já antes do Gólgota nos confrontara com o problema de ser o único em que Jesus é trazido diante de Herodes para ser julgado) é também o único em que Cristo, na cruz, diz a um dos que com ele foram crucificados as palavras lindíssimas “hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43). De igual modo, é só em Lucas (23:46) que Jesus diz, antes de morrer, “Pai, em Tuas mãos deponho o meu espírito”. Reconheça-se que a impressão transmitida pelo Evangelho de Lucas, de repositório de preciosidades ausentes dos outros evangelhos (desde logo o Bom Samaritano ou o Filho Pródigo), adquire consistência com estas três frases únicas ditas na cruz. No entanto, no seu relato da paixão e crucificação de Jesus, Lucas nunca poderia ter servido de fonte única ao cabotino-mor Mel Gibson, pois no Evangelho de Lucas, por extraordinário que isso possa parecer, Jesus não é flagelado. Mais surpreendente ainda: não é coroado de espinhos.

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Outra curiosidade é que só Lucas descreve a crucificação de Jesus como um “espetáculo” (23:48), usando para tal, em sentido próprio, a palavra “teoria” na sua única ocorrência no Novo Testamento. Quem assistiu a esta “teoria”? Lucas não especifica nomes, ao contrário dos outros evangelistas, mas afirma que “todos os conhecidos” de Jesus olhavam à distância para o que estava a acontecer, assim como “as mulheres que o tinham acompanhado desde a Galileia”. Que mulheres seriam essas? Mateus (27:56) identifica algumas delas: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Marcos (15:40) identifica-as como Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé. João (19:25), por seu lado, identifica três Marias: a mãe de Jesus, a tia de Jesus e Maria Madalena. Em João elas não estão à distância, como nos outros evangelhos, mas sim junto da cruz. E de forma única no Evangelho de João, com as três mulheres está também um homem: o anónimo discípulo amado, cujo anonimato foi apagado por Schütz na sua obra musical quando o Crucificado trata o discípulo amado por “Johannes”. Não temos forma de saber se o discípulo amado, autor do quarto evangelho, se chamava João: em rigor, os quatros evangelhos são textos anónimos, pois nunca o nome do seu autor é referido no interior do texto, como sucede (por exemplo) no livro de Apocalipse ou nas cartas de Paulo (mesmo nas que Paulo não escreveu — mas isso é outra história). Sobre a identidade do discípulo amado têm sido várias as hipóteses aventadas: desde João, filho de Zebedeu (a proposta tradicional) a Tomé e Lázaro. A circunstância de ele estar junto da cruz — facto omitido nos outros evangelhos — chama a nossa atenção. E mais ainda a situação de Maria, mãe de Jesus, se encontrar também ali. Como se explica que mais nenhum evangelho (nem sequer os apócrifos evangelhos de Pedro e de Nicodemo) mencione a Virgem Maria nos relatos da paixão e ressurreição de Jesus? Talvez a resposta mais plausível seja que os evangelistas Marcos, Mateus, Lucas, Pedro e Nicodemo não referem a sua presença pela simples razão de que não lhes passou pela cabeça que ela pudesse lá ter estado. Seja como for, é ao relato de João que temos de agradecer obras-primas artísticas como a “Crucificação” de Roger van der Weyden, a “Pietà”, de Michelangelo, ou, num nível bem menos sublime, o “Stabat Mater” de Pergolesi.

 

Devemos então interpretar como isentas de facticidade histórica as palavras unicamente ditas no Evangelho de João pelo Crucificado à sua mãe (“Mulher, eis o teu filho”) e ao seu discípulo amado (“Eis a tua mãe”)? Como é seu apanágio, o quarto evangelho deixa-nos desarmados perante os seus enigmas. Quando chegamos ao capítulo 19 onde se narra a crucificação, a mãe de Jesus (de quem nunca se diz neste evangelho que se chamava Maria ou que era virgem) andava desaparecida desde as bodas de Canã no Capítulo 2. O seu aparecimento inexplicado junto da cruz é muitas vezes interpretado como tendo somente valor simbólico, mas nada nos garante que não haja alguma centelha de verdade histórica na crucificação narrada por João, de quem dependemos, de resto, para informações que estão ausentes dos outros evangelhos: o letreiro trilingue a proclamar a identidade do Crucificado; e o facto de Jesus ter sido pregado na cruz. Esta informação não é dada no relato da crucificação propriamente dita — que tem em comum com os outros evangelhos o facto de, ao contrário do desclassificado filme de Gibson, primar pela sobriedade e pelo understatement — mas sim no episódio pós-ressurreição em que Tomé diz “a não ser que veja nas mãos dele a marcas dos pregos... não acreditarei”. É certo que o apócrifo Evangelho de Pedro também menciona os pregos, mas, dos quatro evangelhos canónicos, só o de João os refere.

 

Os evangelhos canónicos relatam-nos a vida de Cristo, mas é só muito raramente que entram, por assim dizer, na cabeça de Jesus e nos dizem o que ele estaria a sentir em determinada situação. Temos o caso da reação espontânea de amor sentida por Jesus pelo jovem rico em Marcos 10:21, ou a irritação violenta sentida por Jesus no mesmo capítulo do mesmo evangelho (v. 14: remeto para a minha nota sobre esta passagem na tradução que publiquei dos Evangelhos). Temos também a expressão de sentimento interior traduzida pelo sintoma do choro em João 11:35, capítulo onde Jesus também se irrita duas vezes (em João 13:21 ele “agita-se no espírito”). A raridade destes momentos que nos transmitem as emoções de Jesus explica o facto de não nos ser dito, nos relatos canónicos da Paixão, o que Jesus estava a sentir ao ser agredido, flagelado, coroado de espinhos e crucificado. No entanto, o apócrifo Evangelho de Pedro tem o cuidado de frisar que Jesus passou por todo o sofrimento da Paixão sem sofrer. Esta ideia herética, porém, colidia com a noção ortodoxa da natureza de Jesus, que excluía o conceito “docético” de um salvador só aparentemente humano. Outros escritos apócrifos de inspiração gnóstica (como o apócrifo Apocalipse de Pedro) falarão de um Jesus corporal a ser pregado na cruz, enquanto o verdadeiro Jesus se ri da cena da crucificação: “Apegar-se-ão ao nome de um homem morto”, diz Cristo nesse Apocalipse de Pedro, “convencidos de que desse modo se tornarão puros; só que em vez disso se macularão ainda mais”.

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No canónico Evangelho de João, é certo que (novamente de forma única) o Crucificado declara que tem sede (João 19:28). Mas o evangelista sublinha que a razão deste desabafo de Cristo na cruz era a necessidade de cumprir a Escritura (Salmo 68 do Antigo Testamento grego, correspondente ao Salmo 69 do hebraico). Será que o Jesus do Evangelho de João sente mesmo fome e sede (contraste-se Lucas 24:42)? O grande estudioso Ernst Käsemann interrogou-se sobre o sentido em que poderá ter corpo humano “alguém que caminha sobre a água e através de portas fechadas, que é intangível para quem o quer agarrar, que se senta junto do poço de Samaria para pedir, cansado, um pouco de água, ele que não precisa de beber e tem outro alimento que não aquele providenciado pelos seus discípulos” (ver a minha nota a João 1:14).

 

Ao contrário do que acontece em Mateus (27:46) e Marcos (15:34), Jesus, no Evangelho de João, não morre perguntando a Deus porque o abandonou, mas diz “está cumprido” (João 19:30). As famosas palavras em aramaico, diferentemente transliteradas por Mateus e por Marcos, devem ser interpretadas como sinal de desespero dilacerante — como prova de que não se tratou de uma crucificação sem sofrimento (como propõe o apócrifo Evangelho de Pedro)? Por outro lado, é preciso dar a devida importância ao facto de Mateus, Marcos e Lucas registarem a “voz grande” com que Jesus grita as suas últimas palavras. Este homem à beira da morte, depois de todos os maus-tratos sofridos, não sai desta vida com um gemido, mas sim com um grito. Sobretudo no caso de Marcos, considerado o evangelho mais antigo, chama a nossa atenção o uso do verbo grego “gritar” neste momento da morte na cruz, já que de resto o evangelista emprega o verbo apenas em 1:3, na citação de Isaías. Outra curiosidade linguística chama a nossa atenção na frase aramaica “Elôí elôí lemá sabakhtháni” (seguindo a transliteração que lemos em Marcos). No conjunto dos quatro evangelhos, este momento (e o correspondente de Mateus) é o único em que Jesus invoca Deus por meio da palavra “Deus” e não pela palavra “Pai”. Também é a única ocorrência de uma oração de Jesus em que as palavras não são dele, mas sim uma citação do Antigo Testamento. Na cruz, portanto, o Crucificado de Marcos e de Mateus exprime-se de forma extremamente atípica.

 

Voltando às “Sete Palavras de Cristo na Cruz” de Heinrich Schütz, essa joia da música religiosa de qualquer época, ocorre-nos comentar que não é só a junção dos vários ditos na cruz, colhidos a partir dos quatro evangelhos, que se nos afigura questionável, já que as palavras na cruz, entendidas como peças de um puzzle, são peças que não encaixam umas nas outras. Como estivemos a ver, todas as palavras atribuídas pelos evangelistas a Cristo na cruz levantam cada uma delas uma problemática própria, quer no que toca à sua história textual quer no que diz respeito ao problema sobremaneira melindroso da sua historicidade. No século XVIII, o compositor austríaco Joseph Haydn contornou o problema das palavras ditas na cruz na sua obra musical “As Sete Últimas Palavras do Nosso Salvador na Cruz”, concebendo inicialmente a obra como peça exclusivamente instrumental (existem versões para orquestra, para quarteto de cordas e para instrumento de tecla). A obra foi depois remodelada em forma de oratório, mas a sua versão mais eficaz e comovente é a instrumental. Talvez porque o mistério de Deus crucificado — independentemente daquilo que os seus seguidores quiseram mais tarde pensar que o Crucificado tivesse dito — seja algo que, em última análise, as palavras não podem exprimir. E quando a palavra soçobra só a música nos pode levar mais longe. 

 

Frederico Lourenço | Revista Expresso. 2370, 30 de Março de 2018]

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