Inúteis para os homens, úteis para Deus

Liturgia 24 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Era um momento penoso que se repetia com alguma regularidade. Um ritual discriminatório através do qual se evidenciava a perceção dominante, o valor de cada um, o peso da amizade e a estratégia competitiva de um líder. Demorava uns instantes mas parecia uma eternidade. Nesse jogo que antecedia o jogo, no qual as equipas eram formadas, os nomes dos mais dotados surgiam em primeiro lugar e eram disputados sofregamente pelos capitães das equipas adversárias. Para o fim, como último recurso, integravam o membro conhecido como o estorvo, o de reduzida prestação. O sujeito de nome adiado revivia o julgamento na praça pública mas enfrentava-o sempre como se fosse pela primeira vez. A ferida na autoestima era reativada todos os dias que o professor pedia para formar duas equipas. As marcas de ter sido sucessivamente a última escolha ficaram gravadas na fronte. Ainda hoje ele vê como é visto. «Serei sempre o último recurso?».


A história, sabemo-lo bem, é escrita pelos vencedores. O universo daqueles que estiveram no fundo da tabela, os feridos e sem voz, os que permaneceram na sombra de alguém, quase nada consta. E quem era o rei dos Judeus que ouvimos falar de novo neste domingo, festa de Cristo Rei? Do diálogo entre Pilatos e Jesus, segundo a narrativa de S. João, apercebemo-nos da grande disparidade entre os dois. Por um lado vemos um nobre senhor, representante de um império e, por outro, Jesus, um homem de origem duvidosa que persiste num discurso incompreensível.


Só mais tarde, à luz da ressurreição, o valor das personagens é invertido. Jesus é o Senhor que, segundo S. Paulo, abdicou da «forma de Deus» para assumir «a forma de servo» e Pilatos, pelo contrário, um infeliz funcionário público incapaz de resistir às pressões de um grupo cego e manipulador.


Jesus inaugura um reino sem fronteiras no tempo e no espaço. Ele exerce, sobretudo nas primeiras décadas, um fascínio irresistível sobre os que fazem parte da franja da sociedade, as mulheres, os escravos, os agricultores, aqueles que, enfim, nenhum líder competitivo escolheria para membro da sua equipa. Na nova ordem, «os que são inúteis para os homens são úteis para Deus». Todos têm acesso à «filosofia dada por Deus». A «escola de virtude está aberta a todos». Estes princípios de transformação pessoal são assumidos pela comunidade que se diferencia claramente da sociedade governada por outro rei e devota de outros deuses.


A certa altura, num tempo quase esquecido, o rei-pobre foi revestido com os mais finos e ricos trajes do mundo. Nem lhe faltou uma coroa de ouro. Como se Ele almejasse tais adornos para ser quem era. Enfeitaram-no uma e outra vez, sobretudo quando a comunidade passou a ser uma imagem distorcida do Reino que era chamada a ser, uma espécie de grupo de perfeitos que ocupavam os primeiros lugares no topo de uma hierarquia. Não consta, nesta história, que Ele se tenha deixado corromper. Ele permaneceu distante e silencioso, o Deus adiado e incompreendido.


Hoje o Homem-Deus continua de mãos atadas e impotente, como se ainda estivesse à frente de Pilatos. A sua figura lembra-nos, para desconforto, que não é deste mundo o seu reino e é inútil recorrer a Ele para deixar o fundo da tabela dos atuais jogos de poder. Sim, «aqueles que são inúteis para os homens são úteis para Deus».

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