Caro Abraão

Liturgia 16 março 2019  •  Tempo de Leitura: 3

Há tanto tempo que ando para te escrever, mas todas as tentativas não passaram de rascunhos amarrotados que se precipitaram no lixo. Na verdade, também não tenho nada de extraordinário para dizer. Gostava apenas que soubesses que tens sido para muitos dos teus descendentes uma referência paterna exemplar. Quando releio a tua história, apetece-me simplesmente escrever a palavra «obrigado». Obrigado mil vezes por teres saído da tua casa, naquela noite de verão, levado pela mão do teu Deus. Sei que os teus parentes e amigos, uns tempos antes, ficaram deveras preocupados quando te lançaste no caminho virgem, à procura da terra desconhecida, aquela que havia de ser a pátria do povo. Imagino as dificuldades ao longo do trajeto.

 

Por vezes reencontro-te inesperadamente a contemplar as estrelas do firmamento. Como terás sido feliz, nessa noite, em que acreditaste na promessa feita pelo teu Deus. A propósito, acho que nos fazia bem repetir regularmente o ritual de sair das nossas casas, dos muitos espaços fechados, para voltar a contemplar a abóbada celeste. Fazia-nos bem levantar a cabeça dos olhos dos ecrãs que se multiplicam como matéria indispensável, como se sem eles não pudéssemos viver. Se o fizéssemos, julgo que ouviríamos mais vezes o Senhor que te pôs a caminho, Aquele que dialogou contigo no silêncio do deserto, porque Ele também tem segredos para nos revelar.

 

Compreendo bem as tuas perguntas. Compreendo o sono profundo de uma espera indefinida. Compreendo a inquietante angústia dos prolongados anoiteceres, e os tormentos provocados por uma matilha de dúvidas, quando a fé é ainda uma ténue chama acabada de nascer. É difícil esperar tendo tão pouco. É difícil avançar pela noite dentro, guiado por essa pequena força, deixá-la naturalmente crescer e amadurecer, sem perder a esperança, até ao encontro definitivo com o nosso Deus. Mas não conheço outro caminho para me aproximar desse mistério fascinante, desse Deus que desperta em mim o desejo de plenitude.

 

Receio perturbar o teu eterno sossego, mas não resisto a pedir-te que intercedas por nós, poeira lançada nesta história com quem um dia sonhaste. Pede ao bom Deus que os teus filhos confluam no mesmo sentido, que procurem a paz e te amem acima de todas as coisas.

 

[©"Viagem de Abraão para Canaã" (det.) | Pieter Pietersz Lastman | 1614 | Museu Hermitage, S. Petersburgo, Rússia]

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