Pentecostes
Os dias eram como fotocópias de um original sem graça. Todos tinham a mesma sombra. Por vezes, perguntava pelo nome enquanto se aproximava de um calendário. «Ainda é quarta», dizia enquanto dava início ao rígido programa.
Tudo era previsível: a hora de abrir a janela, o pequeno almoço, a refeição principal deixada pela funcionária do centro paroquial, o programa da tarde, até o adormecer, quando na rua se arrastavam os contentores carregados de lixo. Foi, pois, com muita hesitação que acedeu ao convite. Já não saía de casa há muito tempo, mas sabia bem o que era o mundo através da TV. Não precisava de ter incómodos maiores para confirmar. Apenas mantinha o desejo de voltar a entrar naquele santuário. A ideia de violar o ritual diário, no entanto, impedia-a de aceitar o convite, mesmo que fosse por um dia.
As recordações fervilhavam de intensidade à medida que o tempo passava. Inscreveu-se no limite do prazo repetindo, mesmo assim, que «poderia ficar em casa e desistir, caso não estivesse em condições».
Vestida de preto, atravessou nervosa o umbral do prédio. Não se lembrava bem da última vez que o fizera. Teria sido no funeral do marido? Apeteceu-lhe voltar para trás, mas não quis virar as costas às pessoas que já a esperavam.
As ruas pareciam-lhe sujas. A calçada tinha sido removida. Duas crianças contornaram-na apressadamente sem dizer palavra. Ela protestou em silêncio. Lamentou a falta de espaço na carrinha. Às perguntas das utentes da instituição, ao longo do percurso, respondeu-lhes com monossílabos. Arrependia-se de ter saído de casa. «A esta hora, eu devia estar a…». Afinal o mundo era desagradável e feio.
A entrada no santuário não lhe deu alívio. Protestava em silêncio. As pessoas já não eram como antigamente. Não se podia confiar em ninguém. O que é que fazia ali? Tinha sido enganada. Desejava regressar «ao seu convento». A celebração começou. De pé, ao fundo da igreja, junto ao altar, o coro começou a cantar animado. «Vem Espírito de amor, ilumina a minha vida…». Pouco depois, outro cântico em forma de prece. «Mandai Senhor o vosso Espírito…». Vestido de vermelho, o padre pareceu-lhe repetitivo e despropositadamente entusiasmado. A certa altura, foi cumprimentada e abraçada por estranhos como se fosse uma irmã. Outro cântico abriu a procissão para a comunhão. «Eu sou o pão vivo…». A assembleia engatou na melodia e, sem vergonha, cantava num ritmo que obrigava o pequeno coro a abrandar.
Depois fez-se silêncio. Um silêncio estranho. Ela estremeceu. Perguntou que dia era aquele. O calendário tinha ficado em casa. O rosto das pessoas dizia qualquer coisa que ela não sabia explicar. Sentiu vontade de as abraçar. Conteve-se envergonhada. Riu-se baixinho. E agradeceu pela primeira vez nos últimos anos. Aquele espaço estava mais lindo do que nunca. O dia estava a ser uma maravilha. Seria possível multiplicar dias assim? O cântico de louvor fê-la recordar a juventude. E cantou sem medo.