Transfigurações
A mesa fica num recanto sombrio do corredor. Os voluntários visitam-na regularmente porque nela são deixados os materiais doados à igreja, como roupas, sapatos, pratos, brinquedos e livros. Os voluntários avaliam o material, separam o que vai para o lixo e o que é ainda aproveitável. Por vezes, entre a montanha de objetos, no meio de roupas e sapatos, encontram-se objetos sagrados, como uma cruz ou uma imagem de Nossa Senhora. Às vezes ouço variações do mesmo comentário pesaroso nalguma voluntária: «Amanhã, também as minhas imagens vão estar aqui. Os meus filhos já não querem saber». E lembro-me das histórias de homens e mulheres que, perante a morte iminente, vieram deixar coisas simples, como a gravura de algum santo, um pequeno missal ou um terço, porque não tinham a quem deixar, porque «os novos já não querem saber disto». O que tinha sido importante para eles, avaliado agora pela exigente nova bolsa de valores, não tinha qualquer importância.
A imagem do Crucificado coberta de pó da falecida devota, abandonada como símbolo indesejado, conserva o rosto contorcido pelo suplício do martírio. De braços abertos, a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo, com a boca semiaberta e os olhos revirados para o céu, o Condenado parece repetir angustiante pergunta: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?». O venerável sinal da entrega de Deus deixou de ser uma presença não só nos lugares públicos, mas também nas muitas casas dos batizados. Os materiais deixados na igreja garantem a «transfiguração» da mentalidade e anunciam uma mudança de paradigma cultural. O que era venerado e amado outrora, é agora dispensado como um adorno sem interesse.
Mas o homem não deixou de ser religioso. Assiste-se, isso sim, à fragmentação da identidade do crente, bem como a uma progressiva reconfiguração da experiência religiosa, que, como sabemos, já não obedece, como aconteceu durante séculos no Ocidente, a ritmos e ritos definidos por uma instituição como a Igreja católica. Hoje, as expressões “do acreditar” são múltiplas, parecem competir entre si, privilegiam o eu em detrimento do nós e, em alguns casos, são feiras de entretenimento, lugares de autopromoção, espaços onde no discurso ecoa uma réplica distorcida da verdade.
O que pomos de parte, o que deixamos para trás, não só diz o que somos, mas também para onde queremos ir. Para onde vamos? Com quem queremos caminhar? Que transfiguração desejamos? Nesta Quaresma, somos convidados a subir ao monte com Jesus. Contemplar a sua transfiguração é deixar-se transfigurar. O que é que estamos dispostos a pôr de parte para ir com Ele?