Quaresma: Três conversões para um encontro pessoal com Cristo
Conversão à escuta
A primeira fase do caminho sinodal permite-nos escutar ainda mais de perto as vozes que ressoam dentro de nós e dos nossos irmãos. Entre estas vozes, as das crianças tocam-nos com a sua eficaz espontaneidade: «Não me recordo do que havia antes do Covid»; «só tenho um desejo: voltar a abraçar os meus avós». Chegam ao coração também as palavras dos adolescentes: «Estou a perder os anos mais belos da minha vida»; «esperei tanto poder ir para a universidade, mas agora estou sempre à frente de um computador». As vozes dos peritos, depois, solicitam à confiança em relação à ciência, ainda que sublinham o quanto ela é falível e aperfeiçoável. Chega também até nós o grito dos técnicos de saúde, que pedem para serem ajudados com comportamentos responsáveis. E, enfim, ressoam as palavras de alguns párocos, juntamente com os seus catequistas e colaboradores pastorais, que veem diminuir o número das atividades e a participação do povo, preocupados por não conseguirem regressar aos níveis de antes, mas ao mesmo tempo conscientes de que não se deve simplesmente sonhar um retorno à denominada “normalidade”.
Escutar em profundidade todas estas vozes antes de tudo faz bem à própria Igreja. Sentimos a necessidade de aprender a escutar de maneira empática, interpelados na primeira pessoa de cada vez que um irmão se abre connosco. Na Bíblia, é antes de tudo Deus que escuta o grito do seu povo sofredor e se move compaixão pela sua salvação (cf. Êxodo 3, 7-9). Mas depois a escuta é o imperativo dirigido ao crente, que ressoa também na boca de Jesus como o primeiro e maior dos mandamentos: «Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor» (Marcos 12, 29; cf. Deuteronómio 6, 4). A este género de escuta a Escritura liga diretamente o amor para com os irmãos (cf. Marcos 12, 31). Ler, meditar e rezar a Palavra de Deus significa preparar o coração para amar sem limites.
Não cedamos à tentação de um passado idealizado ou de uma expetativa do futuro desde a sacada da janela. Antes, é urgente a obediência ao presente, sem se deixar vencer pelo medo que paralisa, pelos lamentos ou pelas ilusões. A atitude do cristão é a da perseverança
A escuta transforma por isso primeiro que tudo aquele que escuta, esconjurando o risco da arrogância e da autorreferencialidade. Uma Igreja que escuta é uma Igreja sensível também ao sopro do Espírito. Neste sentido, pode ser útil retomar (…) [estas palavras]: «A escuta não é uma simples técnica para tornar o anúncio mais eficaz; a escuta é ela própria anúncio, porque transmite ao outro uma mensagem balsâmica: “Tu, para mim, és importante, mereces o meu tempo e a minha atenção, és portadora de experiências e ideias que me provocam e me ajudam a crescer”. Escuta da Palavra de Deus e escuta dos irmãos e das irmãs seguem ao mesmo passo. A escuta dos últimos, depois, é na Igreja particularmente preciosa, pois repropõe o estilo de Jesus, que prestava escuta aos pequenos, aos doentes, às mulheres, aos pecadores, aos pobres, aos excluídos».
Esta primeira conversão implica uma atitude de abertura em relação à voz de Deus, que nos chega através da Escritura, dos irmãos e dos acontecimentos da vida. Que obstáculos encontra ainda a escuta livre e sincera da parte da Igreja? Como podemos melhorar na Igreja o modo de escutar?
Nos primeiros meses da pandemia assistimos a um sobressalto de humanidade, que favoreceu a caridade e a fraternidade. Depois este impulso inicial foi aos poucos esmorecendo, dando lugar ao cansaço, à desconfiança, ao fatalismo, ao fechamento em si próprio, à culpabilização do outro e ao descompromisso. Mas a fé não é uma varinha mágica
Conversão à realidade
«Quando veio a plenitude do tempo» (Gálatas 4, 4). Com estas palavras, Paulo anuncia o mistério da incarnação. O Deus cristão é o Deus da história; é-o a tal ponto, que decidiu incarnar-se num espaço e num tempo precisos. É impossível dizer o que Deus viu de particular naquele tempo preciso, a ponto de o eleger como o momento apropriado para a incarnação. Decerto a presença do Filho de Deus entre nós foi a prova definitiva de quanto a história dos seres humanos é importante aos olhos do Pai.
A época em que Jesus viveu não se pode, certamente, definir como a idade do ouro: pelo contrário, a violência, as guerras, a escravidão, as doenças e a morte eram muito mais invasivas e frequentes na vida das pessoas do que o são hoje. Naquela época e naquela terra morria-se seguramente mais e com maior dramática facilidade do que acontece hoje. E todavia, naquela circunstância da história humana, apesar das suas sombras, Deus viu e reconheceu «a plenitude dos tempos».
A ancoragem à realidade histórica caracteriza, portanto, a fé cristã. Não cedamos à tentação de um passado idealizado ou de uma expetativa do futuro desde a sacada da janela. Antes, é urgente a obediência ao presente, sem se deixar vencer pelo medo que paralisa, pelos lamentos ou pelas ilusões. A atitude do cristão é a da perseverança: «Se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar» (Romanos 8, 25). Esta perseverança é o comportamento quotidiano do cristão que sustém o peso da história (cf. 2 coríntios 6, 4), pessoal e comunitária.
Permanecer fiéis à realidade do tempo presente não equivale a ficar pela superfície dos factos nem a legitimar cada situação em curso. Trata-se, antes, de colher «a plenitude do tempo» ou de vislumbrar a ação do Espírito, que torna cada época um «tempo oportuno»
Nos primeiros meses da pandemia assistimos a um sobressalto de humanidade, que favoreceu a caridade e a fraternidade. Depois este impulso inicial foi aos poucos esmorecendo, dando lugar ao cansaço, à desconfiança, ao fatalismo, ao fechamento em si próprio, à culpabilização do outro e ao descompromisso. Mas a fé não é uma varinha mágica. Quando as soluções para os problemas requerem percursos longos, é preciso paciência, a paciência cristã, que foge de atalhos simplistas e permite permanecer sólido no compromisso pelo bem de todos, e não para uma vantagem egoísta ou de fação. Não terá sido esta, talvez, “a paciência de Cristo” (2 Tessalonicenses 3, 5), que se exprimiu em grau supremo no mistério pascal? Não terá sido, talvez, esta a sua firme vontade de amar a humanidade sem se lamentar e sem se poupar? (cf. João 13, 1)?
Como comunidade cristã, mais do que como crentes singulares, devemos reapropriar-nos do tempo presente com paciência e permanecer na adesão à realidade. Sentimos, por isso, que é urgente a tarefa eclesial de educar para a verdade, contribuindo para colmatar a diferença entre realidade e falsa perceção da realidade. Nesta “separação” entre a realidade e a sua perceção aninha-se o gérmen da ignorância, do medo e da intolerância. Mas é esta a realidade que nos é dada e que somos chamados a amar com perseverança.
Esta segunda conversão diz então respeito ao compromisso em documentar-se com seriedade e liberdade de mente, e a suportar que há problemas que não podem ser resolvidos em breve tempo e com pouco esforço. Que pré-compreensões rígidas impedem de nos deixarmos convencer pelas novidades que provêm da realidade. De quanta paciência é capaz o coração dos crentes na construção de soluções para a vida das pessoas e da sociedade?
O Espírito pede ao crente para considerar ainda hoje a realidade em chave pascal, como Jesus testemunhou, e não como o mundo a vê. Para o discípulo, uma derrota pode ser uma vitória, uma perda uma conquista
Conversão à espiritualidade
Permanecer fiéis à realidade do tempo presente não equivale, no entanto, a ficar pela superfície dos factos nem a legitimar cada situação em curso. Trata-se, antes, de colher «a plenitude do tempo» ou de vislumbrar a ação do Espírito, que torna cada época um «tempo oportuno».
A época em que Jesus viveu foi fundamental por via da sua presença no interior da história humana e, em particular, de quem entrava em contacto com Ele. Os seus discípulos continuaram a viver a sua vida naquele contexto histórico, com todas as suas contradições e os seus limites: mas a sua companhia modificou o modo de estar no mundo. O Mestre de Nazaré ensinou-os a serem protagonistas daquele tempo através da fé no Pai misericordioso, a caridade para com os últimos e a esperança num renovamento interior das pessoas. Para os discípulos, foi Jesus que deu sentido a uma época que, de outra forma, teria tido outros critérios humanos para ser julgada.
Após a sua morte, da ausência física de Jesus floresceu a vida eterna do Ressuscitado e a presença do Espírito na Igreja: «Eu apelarei ao Pai e Ele vos dará outro Paráclito para que esteja sempre convosco, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós é que o conheceis, porque permanece junto de vós, e está em vós. Não vos deixarei órfãos» (João 14, 16-18; cf. Atos 2, 1-13). O Espírito pede ao crente para considerar ainda hoje a realidade em chave pascal, como Jesus testemunhou, e não como o mundo a vê. Para o discípulo, uma derrota pode ser uma vitória, uma perda uma conquista. Começar a viver a Páscoa, que nos atende no termo do tempo da Quaresma, significa considerar a história na ótica do amor, mesmo se este comporta carregar a cruz própria e do outro (cf. Mateus 16, 24; 27, 32; Colossenses 3, 13; Efésios 4, 1-3).
Para o cristão, este não é simplesmente o tempo marcado pelas restrições devidas à pandemia: é, antes, um tempo do Espírito, um tempo de plenitude, porque contém oportunidades de amor criativo que em nenhuma outra época histórica se tinham apresentado
O caminho sinodal está a fazer amadurecer nas Igrejas (…) um modo novo de escutar a realidade para a julgar de modo espiritual e produzir opções mais evangélicas. O Espírito, com efeito, não aliena da história: enquanto radica no presente, impele a mudá-lo para melhor. Para se permanecer fiel à realidade e tornar-se, ao mesmo tempo, construtor de um mundo melhor, requer-se uma interiorização profunda do estilo de Jesus, do seu olhar espiritual, da sua capacidade de ver por todo o lado ocasiões para mostrar quanto é grande o amor do Pai.
Para o cristão, este não é simplesmente o tempo marcado pelas restrições devidas à pandemia: é, antes, um tempo do Espírito, um tempo de plenitude, porque contém oportunidades de amor criativo que em nenhuma outra época histórica se tinham apresentado.
Talvez não sejamos ainda suficientemente livres de coração para reconhecer estas oportunidades de amor, porque travados pelo medo ou condicionados por expetativas irrealistas. Enquanto o Espírito, em vez disso, continua a trabalhar como sempre. Que ação do Espírito é possível reconhecer neste nosso tempo? Indo para além dos meros factos que acontecem no nosso presente, que leitura espiritual podemos fazer da nossa época, para progredir espiritualmente como pessoas singulares e como comunidade crente?
[Conferência Episcopal Italiana | Mensagem para a Quaresma 2022 | Fonte: Conferência Episcopal Italiana]