«O maior de entre vós será o vosso servo»

Liturgia 6 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 4

«(…) Não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por ‘doutores’, porque um só é o vosso ‘Doutor’: Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado» (De Mateus 23, 1-12, Evangelho do 31.º Domingo, Ano A).

 

A Palavra de Deus põe-me entre a espada e a parede: sou, eu também, como escriba e fariseu, alguém que diz mas não faz? Cristão de substância ou de fachada? Uma “pergunta do coração”, daquelas que fazem viver: sou um falso que não é aquilo que diz e não diz aquilo que é, ou pessoa verdadeira, realizada, em quem coincidem anúncio e anunciador? Há golpes duros nas palavras de Jesus; mas de cada vez que isso acontece, o propósito não é ferir, mas quebrar a concha para que apareça a pérola. A concha não é a fragilidade, mas a hipocrisia.

 

No Evangelho, Jesus não suporta duas categorias de pessoas: os hipócritas e as de coração duro, dois géneros humanos que muitas vezes se identificam. Atam pesos enormes às costas das pessoas, mas não os tocam nem com um dedo. Hipócrita é o moralista que impõe leis rígidas, mas apenas aos outros, e quanto mais severo é com eles, mais próximo se sente de Deus!

 

Jesus é rigoroso, mas nunca rígido. Paulo, na segunda leitura desde domingo, escreve: «Desejávamos ardentemente partilhar convosco não só o Evangelho de Deus mas a própria vida» (1 Tessalonissenses 2, 8). O hipócrita, ao contrário, diz: «Dei-vos a lei, estou pronto». São funcionários das regras e analfabetos do coração. E até analfabetos de Deus. Isto é, no seu íntimo são estruturalmente ateus.

 

Hipócrita é termo grego que significa ator, o artista de teatro que recita um texto e endossa uma máscara: fazem todas as obras para serem admirados pelas pessoas, comprazem-se com os primeiros lugares, as saudações nas praças, os aplausos… Mas o coração está ausente, o coração está algures. Fingem: são personagens, deixaram de ser pessoas. E esta é a pior desventura que pode acontecer, a dissociação da alma, a dupla personalidade, quando amas aquilo que sai da pele para fora (a aparência e o supérfluo) e não cuidas daquilo que vai da pele para o interior (a substância e o essencial).

 

São muito raras as pessoas autênticas, de uma peça só, que são elas próprias em público como em privado, sem máscaras. Quando encontramos uma, não as deixamos ir embora sem ter tentado fazê-la amiga. Está entre aquelas que abrem uma fenda para a verdade, uma brecha para Deus.

 

Jesus, depois, evidencia outro erro que esfarela e envenena a vida desde dentro: o amor ao poder. Não vos fazeis chamar de mestre, ou doutor, ou pai, como se fosseis superiores aos outros. Sois todos irmãos. Mas nós estamos sempre impreparados para ser irmãos e irmãs. A fraternidade naufragou na história humana, é trauma e sonho, sempre ferida, sempre ameaçada, sempre em risco. Porém desenha um mundo bom que se rege por laços de afeto feliz, em que o maior é aquele que serve. Porque um mundo fundado no conceito do poder e do inimigo não é uma civilização, mas uma barbárie.

 

[Ermes Ronchi| In Avvenire]

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