As exigências do Amor

Liturgia 28 outubro 2017  •  Tempo de Leitura: 3

Num dos seus contos mais conhecidos, «Perdoando Deus», C. Lispector descreve, com muita graça e subtileza, a sensação de liberdade que a invadia enquanto passeava pela Av. De Copacabana. Algo de muito novo e inesperado nascia dentro da escritora brasileira. Pela primeira vez «sentia-se a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo». Ela apreendera que Deus se amava como «amor grave, amor solene, respeitoso, medo, e reverência. Mas nunca lhe tinham falado de carinho maternal por Ele». A experiencia de plenitude existencial, de leveza do ser, do encantamento próprio de quem está apaixonada, desvanece-se subitamente quando, por acidente, a autora tropeça num enorme rato morto. Aterrorizada protesta contra Deus e interroga-se repetidamente sobre a pertinência deste susto durante o seu pacifico percurso pelas avenidas da cidade brasileira. «Então é assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada amando de puro amor inocente, e Deus me mostra o seu rato?». Clarice é invadida pelo desejo obsessivo de vingança, alimentado pela raiva por ter sido provocada por um Deus que lhe atirou um rato ruivo à cara nua. O breve conto é uma grande dissertação sobre o modo como queremos amar Deus, desse modo alheado da realidade, evitando «o rato», isto é, a parte negra, incómoda que esse amor naturalmente acarreta, o lado “desconfortável” que existe fora e dentro de mim, um Deus que recorda a minha fragilidade. A autora termina com uma afirmação que poderia ser uma profissão de fé: «Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe».

 

No confronto com Jesus, os fariseus querem saber qual é o maior de todos os mandamentos. Jesus lembra-lhes o essencial, a nota dominante, a norma que havia de configurar o rosto da nova comunidade e de dar uma identidade diferenciada das já existentes: «Amar a Deus» não de uma forma leve, superficial, quando dá jeito, e o «amor ao próximo», à pessoa concreta, na sua circunstância específica, o pobre, o estrangeiro, rico, o outsider, o analfabeto… Amá-lo e caminhar com ele, ser família, procurar a verdade motivados pelo encantamento que esse amor divino introduz nos corações dos homens, assumindo e ajudando os outros a integrar as contrariedades de cada dia. Não é um amor platónico, angelical e sem ratos. A negação de uma parte da realidade é sempre o primeiro passo para exclusão, é um modo de indiferença que mata o outro na sua singularidade, é um mecanismo que revela a nossa incapacidade para integrar a dissonância.

 

Senhor, ajuda-nos a amar.

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