Entre Advento e Natal, ética da atenção?
A “atenção” (attentio) vem de “atender” (attendere) e significa orientar o espírito e a mente para aquilo que vem. Esta orientação corporal de si pressupõe a vigilância e a meditação enquanto experiência espiritual e lugares onde se exercita a atenção. A oração é um ato corpóreo, de quase suspensão do tempo e do espaço, de mobilização sensível que nos envolve totalmente na reciprocidade de uma relação. O tempo de advento é um tempo de exercitação da atenção, de prática de uma “ética da atenção”, como escreve a filósofa francesa Natalie Depraz (in Attention et vigilance. À la croisée de la phénoménologie et des sciences cognitives).
Atender é olhar o tempo de um outro modo, a partir da doação e da dádiva. Dar tempo, é dar-se por inteiro nesse tempo de espacialidades e vida cruzadas, sem o esgotar e sem se esgotar, é um ato de reconhecimento de que a condição temporal nos é dada; é a acreditação da possível vinda de… Dar o seu tempo é ser dom para os que se sentem esquecidos nas brumas temporais da história, sem eternidade. Dar algo do seu tempo, é fazer do presente grávido de futuro promitente; é atender, olhar o outro/a, é dizer que em cada sobressalto invernal pode florir uma amendoeira; é perguntar: O que te perturba?” (Simone Weil). Vigiar é atender, qual ato litúrgico expectante de floração em tempos de “esplendor do caos” (Eduardo Lourenço) e de barbárie.
Muitos são os lugares e espaços expressivos do exercício vigilante da vida, de desabrochamento da criatividade adormecida dos humanos. A arte, em sua manifestação profunda da condição humana de outrem (além do contentamento autobiográfico), é uma das expressões onde se poderá exercitar essa “ética da atenção”, do olhar proexistencial e proafetivo, de cuidado das vítimas da voragem mecânica dos mercados e da solidão inóspita do abandono total.
Simone Weil, filósofa e mística de olhos abertos ao drama do homem moderno, dá corpo à «ética da atenção», quando, no seu livro À espera de Deus, escreve que «não é apenas o amor a Deus que tem por substância a atenção. O amor ao próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito da mesma substância. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo senão de homens capazes de lhe prestarem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é coisa muito rara, muito difícil; é quase um milagre; é um milagre».
O ato sábio de saber olhar não é algo inato. A visão sim! O olhar exige aprendizagem em profundidade e amplitude. O olhar, se o é, é sempre um olhar atento, de expectação e pasmo diante do que ou de quem nos chega como absolutamente inesperado. Por que será que deixamos de nos espantar? A filosofia é tida como a arte do questionamento, melhor a arte do espanto diante dos fenómenos que vêm até nós à espera de acolhimento interpretativo. Paul Tillich, filósofo e teólogo crente, tem razão quando escreve que «a espera antecipa o que não é ainda real. Se esperarmos com esperança e paciência, o poder daquilo que esperamos age em nós… Nós somos mais fortes na expectativa do que na posse».
Na base da vigilância está a atenção e a meditação. A atenção porque coloca o sujeito em estado de tensão, de atendimento, de mobilização corpórea da sua sensibilidade para o que vem ou que possa advir de qualquer evento, do interior ou do exterior, de si ou da relação intercorpórea com a “carne do mundo”. A meditação porque ela exercita e coloca em ato a mente corpórea, o estar no mundo como devir, como processo, à espera da irrupção do novo que advém imprevisivelmente. A «atenção é uma espera, e não há consciência sem uma certa atenção à vida. O devir é aí: ele chama-nos, ou melhor ele nos atrai para ele; esta tração ininterrupta, que nos faz avançar sobre a rota do tempo, é a causa de agirmos continuamente. Toda a ação está sedimentada sobre o futuro» (Natalie Depraz) que vem inesperadamente até nós.
De igual modo, o neurofisiologia alemão Wolf Singer assegura que a «meditação é um processo muito ativo, que exige atenção em grande medida, como processos de aprendizagem, que levam a mudanças duradouras das redes neuronais respetivas... Atividades do cérebro deixam vestígios» (referência facultada pelo professor Manuel Moreira Costa Santos). Esta atividade meditativa, mobilização sensível toda de si ou de uma comunidade, gera uma prática intercorpórea da atendibilidade. A meditação profunda, exercitada quotidianamente, é um ato de kenose, de descentramento e despojamento de si, que permite imaginar novas realidades e transfigurar a existência a partir da palavra, do gesto, do silêncio, do encontro, da saudade, da promessa ou da angústia…
A experiência de tudo isso, como uma constante e variante existencial, precede as pias formulações inquestionáveis. A experiência cristã vive da parusia, da atendibilidade, e por isso, o crente dirige a sua atenção, o seu olhar, o seu movimento corpóreo singular e comunitário para à vinda do corpo glorioso. Adventus de advenio, advinda, chegada ou vinda (de algo para vir). A conversão do olhar e de acolhimento afetivo do Outro que nos chega, que surpreendentemente nos aparece e advém até nós. Atender é tornar-se disponível para o quotidiano e para a sua possível transfiguração. A atenção é uma espera, que «não possuímos, e por isso mesmo esperamos» (Paul Tillich), na surpresa e no espanto de um novum existencial.
Este ato de espera é simultaneamente passivo-ativo. Passivo porque nos é dado, está para além das nossas capacidades e méritos, tal como recebemos o nosso nascimento passivamente. Ativo porque envolve a pessoa toda, o seu empenho e compromisso ao longo da sua existência com os outros. E, nesse sentido, é um ato livre, consciente e responsável do humano crente, de reciprocidade aceitante ou não daquilo que vem como dom, como oferta e como totalidade.
Para Natalie Depraz, que tem procurado realizar um profícuo entrelaçamento entre fenomenologia, espiritualidades ortodoxa e neurociências, existe uma ética atencional que «é um movimento de abertura orientado para as coisas, para os outros e para o mundo; ser consciente, é ser consciente de qualquer coisa». Esta consciência corpórea, na medida em que o corpo se movimenta no espaço intersubjetivo de relação a outrem, é uma consciência em vigilância, «qualidade de presença a si que é condição de presença justa aos outros».
Esta dimensão particular do tempo que envolve a espera ativa e vigilante, na atenção e na meditação orante, parece ter desaparecido em geral da experiência cristã contemporânea, excetuando algumas e belas experiências monásticas de alto perfil antropológico. Paradoxalmente, o esquecimento de uma “teologia do advento” enquanto “ética da atenção e da vigilância” é o mais puro esquecimento de Deus feito carne, de uma vida crente centrada mais na formulação doutrinária, na organização estrutural (sedimentação do presente) sem profecia nem poesia.
Enzo Bianchi, prior da comunidade monástica de Bose, num artigo recente, di-lo doutro modo: «Eis o verdadeiro Natal cristão: nós recordamos o teu nascimento em Belém, Senhor, atendemos a tua vinda gloriosa, acolhemos o teu nascimento em nós, hoje. Por isso o místico do século XVII Angelo Silesio podia afirmar: "Mesmo que Jesus nascesse mil vezes em Belém, se não nasce em ti… tudo é inútil"».
[João Paulo Costa]