Sermão laico de Natal

Liturgia 23 dezembro 2017  •  Tempo de Leitura: 4

Há tempos, uma leitora do “L’Espresso” [jornal italiano] dirigiu-me uma sugestão: «Já que de vez em quando assina textos neste semanário laico, porque é que não experimenta propor uma pregação laica?». (…) Aceito o desafio, também porque esta edição sairá no limiar de uma festa que, mesmo na era pós-cristã, continua a estar bem ligada ao tecido social contemporâneo aparentemente secularizado.

 

Começaria o meu sermão assim: «O Natal de hoje faz-me pensar naquelas ânforas romanas que às vezes os pescadores retiram do mar com as redes, todas cobertas de conchas e incrustações marinhas, que as tornam irreconhecíveis. Para reencontrar a sua forma é preciso remover todas as incrustações. Assim é o Natal. Para redescobrir o seu significado autêntico seria necessário libertá-lo de todas as incrustações consumistas, festivas, costumeiras e cerimoniosas». Este início pode parecer muito moralista? Então confessarei que não são nem palavras minhas nem de um pregador. Não foi senão Alberto Moravia que iniciou assim, há alguns anos, o seu artigo natalício para um diário!

 

É verdade que o ritual laico desta festa cristã é muitas vezes análogo aos filmes delicodoces que chegam aos cinemas no Natal e tem como emblema luzes de néon e montras cheias. No entanto não se pode ignorar que agora muita gente acha difícil até preparar um jantar de Natal digno desse nome. E então a homilia poderia continuar deixando a palavra a um verdadeiro pregador, o papa Francisco, com a incisividade das suas parábolas sobre a pobreza. É ele, de facto, mais do que muitos políticos, a fazer ressoar o rugido da fome no mundo, a escrever na “Evangelii gaudium” páginas ardentes sobre a necessidade de inclusão social dos pobres e sobre a paz e o diálogo social, a descer até Lampedusa para encontrar as novas famílias refugiadas de Belém, como a do recém-nascido Jesus, e a convidar-nos a todos a mudarmo-nos dos centros das cidades festivamente iluminadas para as esquálidas periferias.

 

A propósito de periferias, continuaria a minha pregação mais ou menos laica com um testemunho pessoal. Quando eu era jovem padre, estudante em Roma, visitava os doentes de uma paróquia em Torpignattara. Havia um idoso que me acolhia sempre com alegria, preparava-me o café, detinha-me o mais que podia. Quando tive de dizer adeus pela última vez, dado que estava de regresso a Milão, ele disse-me, desconsolado: «Não sabe o que significa não esperar mais ninguém». Quantas pessoas no dia de Natal estão como ele, sozinhas, esquecidas, em frente a um telefone que não toca porque não há ninguém que se lembra delas e, no máximo, só podem falar com seus queridos mortos.

 

Voltaire dizia que os sermões são como a espada de Carlos Magno, longa e plana, porque os pregadores aquilo que não sabem dar-te em profundidade, dão-te em comprimento. O espaço desta página está a acabar. Concluirei, então, com uma provocação. Também neste ano o Natal tem no mundo a presença habitual de Herodes e inocentes degolados. Deixarei aos leitores a proposta de refletirem sobre um episódio contado pelo embaixador de Israel junto da Santa Sé e que pode ser tanto uma representação da história humana quanto um amargo exame da consciência coletivo.

 

Há anos, Henry Kissinger, secretário de Estado de Nixon, visitava o jardim zoológico bíblico de Jerusalém. A certo ponto ficou impressionado com um leão agachado diante de um cordeiro que ruminava pacificamente. Estaria talvez a tornar-se real a profecia messiânica de Isaías segundo a qual o leão se deitaria ao lado do cordeiro, em perfeita harmonia? «Não», respondeu o diretor do zoológico, «na verdade, todos os dias substituímos o cordeiro por um novo…».

[Card. Gianfranco Ravasi]

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