Um Deus pequenino para beijar

Razões para Acreditar 29 dezembro 2017  •  Tempo de Leitura: 4

É uma particularíssima história de vocação aquela que hoje evocamos, nesta Oitava do Natal. Por um momento podemos erguer os olhos desta página e recriar com a vista a memória da dulcíssima cena da “Anunciação” que o Beato Angélico pintou no convento florentino de S. Marcos. Ou deixar que nos ouvidos fluam as linhas melódicas do “Ave Maria” de Schubert ou do “Otelo” de Verdi.

 

É verdade que a narrativa que Lucas encastoa no primeiro capítulo do seu Evangelho, nos versículos 26-38, pertence ao género literário dos anúncios bíblicos de uma natividade prodigiosa (veja-se, por exemplo, o nascimento de Sansão, presente no livro dos Juízes 13, 2-7).

 

Todavia, o seu conteúdo pode ser inserido na categoria “vocação”. Com efeito, encontram-se os dois componentes fundamentais do “chamamento” divino e da resposta humana. Por um lado, eis que de surpresa entre na vida desta modesta jovem hebraica de Nazaré a voz de Deus através do seu mensageiro, o anjo Gabriel, de acordo com uma modalidade já conhecida: pense-se, por exemplo, no que aconteceu com Zacarias, o pai do Batista, narrada poucas linhas antes por Lucas (1, 5-25).

 

O conteúdo da vocação de Maria é, no entanto, único: é a maternidade de um bebé que será «grande, Filho do Altíssimo, posto sobre o trono de David, cujo reino não terá fim, Filho de Deus». Uma experiência extraordinária que um filósofo e escritor ateu francês, Jean-Paul Sartre, representará de maneira emocionante num drama intitulado “Barioná”, quando foi relegado para o campo de prisioneiros nazi de Treviri: «Cristo é seu filho, carne da sua carne e fruto das suas entranhas. Ela trouxe-o durante nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus».

 

E continuava: «Ela sente que Cristo é seu filho, o seu pequenino, mas também que é Deus. Olha-o pensa: este Deus é meu filho, esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos e esta boquinha tem a forma da minha. É Deus, mas assemelha-se a mim! Nenhuma mulher teve desta maneira o seu Deus só para ela. Um Deus pequeno que se pode tomar entre os braços e cobrir de beijos, um Deus todo quentinho que sorri e respira, um Deus que se pode tocar».

 

Ao chamamento tão estranho do anjo, Maria responde, e este é o outro elemento necessário na história de uma vocação. É a liberdade da adesão que acontece de modo justificado, tanto que a futura mãe objeta: «Como acontecerá isso, dado que não conheço homem?». Ela é ainda virgem, apenas noiva «de um homem da casa de David, de nome José». E o anjo revela-lhe a modo único da sua maternidade: «O Espírito Santo descerá sobre ti…».

 

Nesse instante brota a resposta consciente e corajosa: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra». Uma declaração não só de humildade diante do mistério, mas também de serena consciência da sua função por parte desta mulher que se torna semelhante e mais alta que outros «servos do Senhor» bíblicos, de Abraão a Moisés, de David aos profetas, até ao «Servo do Senhor» por excelência, o Messias. 

 

[Card. Gianfranco Ravasi | Presidente do Conselho Pontifício da Cultura | In Famiglia Cristiana]

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