Caridade como cultura: humilde, discreta, bela
Pode a caridade ser luz, estímulo e desafio para a cultura do nosso presente? Para tentar uma resposta a esta pergunta recorro à palavra poética de um grande do nosso tempo, Mario Luzi. Com a força evocativa e sintética que só a poesia consegue ter, Luzi convida a operar uma espécie de «batismo dos nossos fragmentos», que ofereça um horizonte de sentido às obras e aos dias. É precisamente isso que é capaz de fazer a caridade, boa nova de um amor gratuito que nos envolve e a todos nos transcende, «imemorável evangelho» (…).
A prioridade para a nossa cultura deverá ser, antes de tudo, reconhecer o «imemorável evangelho» oculto sob o lodo ou sepultado nas rochas, onde faz libertar o incêndio: não é a força dos poderosos e a lógica dos violentos que salvará o mundo, mas a irradiação evangélica da caridade.
Será a caridade que nos permitirá valorizar o bem presente em todo o fragmento, sem renunciar ao horizonte unificador do amor que salva, fazendo-nos reconhecer o Evangelho nos sinais dos tempos, nos fragmentos da vida e da história comum, no serviço à pessoa humana e ao bem comum.
Um tal exercício da caridade requererá, certamente, um esforço exigente, que comprometa na construção da convivência civil mulheres e homens novos, ricos de fortes motivações éticas e prontos a dialogar com todos, capazes de dar e receber o perdão e, se necessário, dispostos a sacrificar-se para o bem de todos.
Daqui derivará, em primeiro lugar, a urgência da formação para uma ética da responsabilidade, capaz de antepor o primado da retidão da consciência a todo o interesse e lucro, por muito vantajosos que sejam. Àquela será preciso juntar uma não menos necessária ética da solidariedade, que impeça o compromisso moral de se fechar na esfera reconfortante da “reta intenção” e o projete à procura das mediações históricas necessárias ao serviço de todos.
Nesta frente, crentes e não crentes devem caminhar juntos, pois o que está em jogo é o homem e a construção de uma família dos povos e das culturas à medida da dignidade de cada pessoa humana.
De forma a contribuir para a formação deste conjunto de valores e práticas, a caridade deverá ter características exigentes, sendo inseparavelmente humilde, discreta e bela.
Humilde é a caridade que não escolhe o seu objeto em função da gratificação que dele espera, por nada mais motivada a amar a não ser pela urgência do bem e da necessidade do outro. É a caridade que encontra o seu modelo e a sua fonte no Deus que, como afirma S. Bernardo, «não nos ama porque somos bons e belos, mas torna-nos bons e belos porque nos ama»: um amor impossível, que sozinhos nunca conseguiremos viver, e todavia possível, porque Ele nos torna capazes.
É a caridade que, como diz Paulo, «não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta» (1 Coríntios 13, 5-7).
A esta luz, Bento XVI, na encíclica “Caritas in veritate”, avança uma ideia que parece provocadora e é todavia sufragada pelas experiências das várias formas de “finança ética” e de “economia de comunhão” que se estão a desenvolver no mundo: a relevância do princípio da gratuidade na economia (n. 34).
Sendo verdade que só se crescerá juntos, o reinvestimento de uma parte dos lucros ao serviço da promoção humana e social dos mais desfavorecidos poderá ser garantia de bem-estar para todos: «Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica» (n. 35). Sem a caridade a economia implode porque fica privada da audácia e da tensão ao bem comum, necessárias para inspirar opções a fundo perdido, capazes de desencadear processos positivos de mudança, até de alcance social e económico revolucionário.
A caridade deverá depois ser “discreta”, ou seja, não impor modelos prefabricados, capaz de se colocar à escuta, entrando em processos de discernimento que assumem a complexidade e o confronto com as exigências da justiça para avançar propostas credíveis.
Os medievais expressaram numa fórmula densa a capacidade que a caridade tem de oferecer luz ao discernimento: “Ubi amor, ibi oculos”. Precisamente assim, a caridade é capaz de conjugar-se à paixão da inteligência, dela tem, aliás, necessidade. Diz Agostinho: “Fides nisi cogitetur nulla est”, a fé, se não é pensada, não é. Analogamente, a caridade, que pela fé é suportada, se não é exercitada com inteligência, arrisca-se a não ser verdade.
Há necessidade que viver a caridade como adultos que pensam, não negligentes no serem fiéis à história e às expetativas de uma justiça maior. É esse exercício da caridade que saberá reconhecer, acolher e testemunhar a beleza que salva: a caridade será “bela” se as obras que inspira nascem de um espírito sincero de humildade e de uma opção convicta a favor dos pobres, amadurecida e alimentada no coração, invocada e acolhida do Alto.
Uma caridade assim vivida colocar-se-á à escuta da cultura do tempo e haverá de a fecundar, dela recebendo e oferecendo estímulos, despertando urgências e atenções, especialmente para quem não tem voz ou é invisível aos olhos dos grandes e dos poderosos de turno.
A cultura, se o é, ensinava o P. Lorenzo Milani, não fecha os olhos diante das necessidades dos pobres, antes percebe a necessidade de os conhecer e os fazer presentes, para estimular todos a opções e comportamentos de vida solidários com eles. Neste sentido, «cultura é pertencer à massa e possuir a palavra»: uma cultura assim entendida é o outro nome da caridade pensada e vivida, levada ao conceito e jogada no dom de si até ao fim.
[D. Bruno Forte, Arcebispo de Chieti-Vasto, Itália]