O rapaz da cave

Razões para Acreditar 20 abril 2018  •  Tempo de Leitura: 4

«Piedade de mim? Não, não/ fica com a tua piedade para os jovens,/ que já não precisam de mim./ Eu velho poderei fazer a minha escolha:/ uma boa morte./ Ao jovens resta ainda a escolha/ entre uma realidade irreal/ e dezassete canais.»

 

Assim o poeta inglês Peter Russell (1921-2003) descrevia a triste escolha de muitos jovens, expostos à virtualidade (a «realidade irreal) do monitor do computador e incertos sobre quais das dezenas e dezenas de canais informáticos e televisivos sintonizar.

 

No fim de tudo pode explodir neles o desejo de evasão: vaguearem pelo mundo, entrarem em experiências extravagantes, precipitarem-se nos abismos das dependências da droga.

 

É o que Jesus já tinha delineado numa parábola muito presente durante o ano jubilar da misericórdia, aquela que representa uma família de três atores: o pai e dois filhos, ambos difíceis.

 

Todos perceberam que nos estamos a referir à parábola do pai pródigo de amor, do filho maior pródigo de hipocrisia e egoísmo, e do filho menor pródigo de evasão e de pecado (Lucas 15, 11-32).

 

Usámos o adjetivo «pródigo» porque, na realidade, não é só o filho menor que o merece, mas a título diferente, também os outros personagens da narrativa. Não comentaremos esta parábola que não só conquistou os fiéis, mas também a história da literatura.

 

Por todos os exemplos possíveis, citamos o romance do escritor agnóstico francês André Gide, "O regresso do filho pródigo" (1907), que introduz livremente e provocatoriamente um outro filho mais pequeno, impelido a sair de casa devido ao puritanismo doméstico e ao pai opressivo, e encorajado a não falhar a sua evasão libertadora, como tinha acontecido ao irmão que, em vez disso, tinha retornado a casa derrotado e resignado.

 

Para além desta que é uma deformação da alma profunda da parábola de Jesus, evidenciemos, colocando-os no mesmo plano, os dois irmãos. Ambos se evadem de uma vida autêntica.

 

O primeiro fá-lo de maneira física, isto é, espacial: «Partiu para um país longínquo e lá depauperou o seu património vivendo de modo dissoluto». O outro fá-lo agarrando-se aos bens materiais e ao seu puritanismo que lhe enchem o coração, tornando-o árido, mesquinho e arrogante. As duas histórias, tão diferentes, na realidade entretecem-se entre elas.

 

O desfecho, porém, separa-os. Dos dois filhos difíceis, um permanece aparentemente surdo aos apelos do pai porque o seu espírito está cheio de si próprio e não sente nenhuma necessidade de refletir ou mudar. O outro, arrastando a sua miséria, regressa ao pai para ser purificado e tornado a ser acolhido.

 

A primeira é uma história de obstinação, a segunda é uma vivência de perversão que se transforma em conversão. Mas no fim regressamos à crise juvenil que muitas vezes se esconde sob uma forma de "autismo espiritual" e humano na qual dificilmente se consegue abrir brechas.

 

É isto que exprimimos através de um retrato simbólico desenhado por Raymond Jalbert no seu ensaio "Os rapazes na cave" (1990): «Lá na cave há um rapaz que procura viver a sua vida em paz. Mas um dia terá de unir-se ao mundo de cima e não conseguirá sobreviver. Olhos vidrados na televisão, ouvidos selados pelos auscultadores e, deixado a si próprio, um estranho na sua casa».

 

Pais, educadores, comunidades civis e eclesiais têm de ajudar estes rapazes a sair da cave e a desligar os auscultadores para escutarem uma palavra e um som diferentes, e abrir os olhos a um rosto vivo e amoroso, como acontece ao filho menor na parábola de Lucas.


[Card. Gianfranco Ravasi | In "Famiglia Cristiana"]

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