A cruz, medida do mundo

Razões para Acreditar 31 outubro 2018  •  Tempo de Leitura: 10

Quatro anos antes da sua conversão, ocorrida no Domingo de Ramos de 1841 (9 de abril), John Henry Newman pregou um sermão sobre «A cruz de Cristo, a medida do mundo». O conteúdo desta homilia mostra o fascínio do mistério essencial da fé cristã.

 

Nesse sermão, Newman parte do facto de que os homens pensantes colocam a pergunta sobre o significado e a reta interpretação dos acontecimentos do mundo, do curso da história e dos eventos da sua vida. Procuram, em síntese, uma “chave” para a compreensão do mundo. O que é a reta chave, a interpretação cristã do mundo? Newman responde: «A morte na cruz do Filho de Deus. A morte do eterno Verbo feito carne ensina-nos precisamente o que devemos pensar e o devemos dizer deste mundo. A sua cruz marcou o justo valor a tudo quanto vemos».

 

Newman aplica esta chave de modo concreto a vários ambientes da vida humana. Começa com a procura humana da honra, do luxo e do influxo sobre os outros: «Vai à corte dos soberanos e vê os tesouros e o génio de povos inteiros recolhidos para honrar um simples homem; observa como as multidões se submetem a poucos indivíduos; pensa na formalidade e no cerimonial, no luxo exterior, nos graus e nas etiquetas, e não te esqueças da vanglória: queres saber quanto vale tudo isto? Olha a cruz de Cristo.

 

O pregador dirige-se depois aos ciúmes, invejas e egoísmos no mundo político, económico e social: «Observa os ciúmes vividos pelas nações, as rivalidades comerciais, os exércitos e as frotas destacadas para o combate; examina as várias classes em que a sociedade está dividida, os seus partidos e as suas lutas internas, as maquinações dos ambiciosos e as intrigas dos poderosos. Qual será o fim de toda esta agitação? O túmulo. Qual é a sua medida? A cruz».

 

Newman fala seguidamente do orgulho e da soberba do intelecto e da ciência: «Pensa nas maravilhosas descobertas, nos desenvolvimentos técnicos que delas brotam, nas realizações quase miraculosas que mostram o seu poder; mas ao mesmo tempo reflete no orgulho e na segurança da razão e no supremo culto pelas coisas materiais. Queres formar-te um reto juízo de tudo isto? Olha a cruz».

 

Newman não esquece também o mundo desesperado pela pobreza e pela miséria: «Toma contacto com os pobres e com os abandonados, com os oprimidos e com os prisioneiros; vai aonde a comida é insuficiente e os alojamentos insalubres; pensa no sofrimento, nas doenças prolongadas e nas mais dolorosas, em tudo quanto infunde medo e repulsa, e olha a cruz, se queres saber que coisa deves pensar de tudo isto».

 

O subtítulo deste sermão é uma palavra de João: «Eu, quando for elevado da Terra, atrairei tudo a mim» (12, 32). Baseando-se neste dito, Newman está convicto de que na cruz tudo e todos se encontram: «Tudo a ela está subordinado e ligado. Ela é o centro e a explicação, porque Jesus nela foi erguido para atrair a si tudo, homens e coisas».

 

Constata-se em todo o caso, continua Newman, que esta chave de interpretação não é acessível a todos. O mundo surge muitas vezes mais atraente do que os austeros princípios cristãos; os homens pensam que foram criados para usufruir das coisas do mundo. A doutrina da cruz parece tornar incompatíveis os dois elementos de um sistema que pareciam feitos um para o outro, afastando o fruto daquele que está destinado a comê-lo e a alegria daquele que está destinado a comê-lo e a alegria daquele que dela deveria usufruir.

 

Newman responde a esta objeção acenando para a tentação no paraíso. Seduzida pelo demónio, Eva dá-se conta de que o fruto proibido era bom para comer e deleitoso de aspeto. Comeu do fruto e deu-o também a Adão. «O que há portanto de estranho», interroga-se Newman, «que também nós, descendentes dos progenitores, nos encontremos num mundo onde cresce o fruto proibido, que a nossa prova consista precisamente em o ter à mão de semear e que a nossa felicidade esteja em saber renunciar a ele?».

 

O teólogo de Oxford acrescenta que é superficial considerar que a vida neste mundo seja feita para o prazer. Quem não se detém perante a aparência das coisas e dos acontecimentos, mas olha em profundidade, depressa vê a realidade deveras espalhada da miséria, do sofrimento, da tristeza, do pecado. «A cruz de Cristo mais não faz do que ensinar-nos antecipadamente qual será a nossa experiência do mundo. Ela pede-nos, é verdade, que nos arrependamos dos nossos pecados enquanto tudo à nossa volta é sorriso e atracão; mas se não nos preocuparmos, a longo prazo, será o mesmo duro castigo do pecado a induzir-nos ao pranto».

 

Podemos admitir que a doutrina sobre a cruz não é evidente para o mundo: «As verdades que ela nos revela estão ocultas e à primeira vista assusta-nos, tanto que podemos ser tentados a rebelar-nos. Pode acontecer que também nós digamos, como S. Pedro: “Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!”. No entanto o seu ensinamento é verdadeiro: a verdade não está à superfície mas na profundidade».

 

Similarmente, os verdadeiros cristãos não dizem a todos o seu segredo, mas vivem «na fé do Filho de Deus, que me amou e se deu a si próprio por mim?. E o jejum cristão, por exemplo, deve ser escondido de modo que o outro não se dê conta. Assim a verdade do Crucificado é, segundo as palavras de S. Paulo, um mistério da sabedoria «oculta» de Deus – oculta para o mundo, oculta na alma do crente.

 

Por estas razões Newman chama à sublime doutrina da cruz «o coração da religião» e explica: «Pode dizer-se que o coração é a sede da vida; é a fonte do movimento, do calor, da atividade: do coração o sangue circula até às partes mais periféricas do corpo. O coração faz com que o homem permaneça forte e possa usar as suas faculdades; dá ao cérebro a força de pensar; e se adoece e deixa de funcionar, o homem morre. Do mesmo modo, a santa doutrina do sacrifício expiatório de Cristo é o princípio vital do qual o cristão vive, e sem o qual o cristianismo não existe». Renunciar a esta doutrina tornaria vãos todos os outros ensinamentos da fé. Crer na divindade de Cristo, na sua humanidade, na santa Trindade, no juízo futuro e na ressurreição da carne não seia fé autenticamente cristã sem aderir também à doutrina do sacrifício de Cristo.

 

Por fim, Newman coloca em evidência que o cristianismo não é uma religião triste. É verdade que a fé cristã impede que nos tornemos superficiais e que nos percamos nos prazeres passageiros e vãos deste mundo. A cruz de Cristo mostra-se primeiramente dolorosa, mas, aos poucos, do sofrimento germinam paz e consolação. Assim a cruz abre-nos o caminho para a ressurreição, a alegria, a vitória pascal. Newman afirma que não devemos confiar no mundo, não devemos começar do mundo, «mas da fé, de Cristo, da sua cruz e da humilhação a que ela nos conduz. Procuremos primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras coisas nos serão dadas em acrescento. Só quem escolheu o mundo invisível como ponto de partida poderá realmente usufruir também do mundo visível. Só quem primeiro jejuou poderá depois alegrar-se. Só quem aprendeu a não abusar dos bens da Terra, poderá depois fazer uso deles. Só quem interpreta a realidade terrena como imagem das realidades futuras e aquelas larga por amor destas, se tornará herdeiro de tudo».

 

Em conclusão, segundo Newman, a humildade de Deus mostra-se no facto de que o Omnipotente se tornou impotente, o Eterno temporal, o Deus grande um pequeno homem, um crucificado. Precisamente mediante a sua condescendência, por meio dos vínculo de amor, atrai-nos a si, acolhe-nos como seus filhos e une-nos na sua Igreja. A cruz é a chave para a compreensão da nossa vocação cristã no mundo.

 

 

[Hermann Geissler | In L'Osservatore Romano]

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