Verbo Natal

Razões para Acreditar 27 dezembro 2018  •  Tempo de Leitura: 10

Em João 1, de 1, 1 a 1, 5, podemos encontrar a famosa expressão inicial «en arkhe en ho logos», que se traduz por «no princípio, era o “logos” (verbo)». O texto prossegue dizendo «kai theos en ho logos», que se traduz por «e Deus era o “logos”». Lemos, ainda, «panta di’autou egeneto, kai khoris autou egeneto oude hen», que se pode traduzir como «tudo foi através dele feito e sem ele nada foi feito». O texto avança para a afirmação «ho gegonen en auto(i) zoe en, kai he zoe en to phos ton anthropon», traduzível por «o que foi nele feito era vida e a vida a luz dos seres humanos».

 

O versículo 5 manifesta que a luz anula as trevas.

 

Deste modo, encontramos como Natal, em João, a manifestação desta luz em forma de carne humana: «kai ho logos sarks egeneto kai eskenosen en hemin», «e o “logos” carne se fez e habitou entre nós».

 

A primeira parte do Evangelho aponta para a eternidade do «Logos», pois o princípio de que se fala não é um princípio cronológico, no tempo, ou mesmo o princípio do tempo, mas isso que constitui o fundamento metafísico de tudo, antes de tempo, de mundo, de tudo o que não é eterno. Isso, «isto», é propriamente Deus como absoluto de realidade metafísica, definível apenas como isso que está “em vez” do absoluto do nada. Este ato absoluto que impede o nada, «isto», necessariamente infinito em ato, é Deus. Deus metafísico dos filósofos, diria Pascal, mas necessariamente isso sem o que nada haveria, em absoluto.

 

A referência ao poder absoluto da luz no seio do que, sem ela, seriam as trevas aponta precisamente para tal absoluto contra o qual nada pode coisa alguma.

 

Deus, neste sentido eterno, é sem natal. Só há natal para o que não é eterno. Não há natal para o espírito; não há natal para o absoluto que se opõe ao nada. Este é o único mistério que realmente existe: será para sempre impenetrável. O mais, desconhecido, pode ser conhecido. Tal implica, por exemplo, que não possa haver um mistério do mal, confundido com a etiologia desconhecida da nossa ação que impede ou destrói o bem. Mas será mesmo desconhecida?

 

Quanto ao dito mistério do amor de Deus por nós, o mistério resolve-se precisamente quando o «logos» se faz carne 1, 14. «O “logos” faz-se carne». O «logos» é génese da carne. A carne – a de Cristo, mas, não havendo restrição, é toda a carne – é, assim, génese do «logos». Tal faz todo o sentido, se se pensar no que é dito em Génesis 1, quando é por meio do seu «logos» que Deus tudo cria, mesmo o que, depois de dito, é a carne. E toda a carne é santa quando acabada de dizer por Deus. Não, há, assim enquanto tal e na sua pureza, uma carne má ou uma maldade da carne. Defender tal é imediatamente acusar Deus de criar algo mau em si mesmo.

 

Diz o texto de João que o que foi feito no «Logos» era vida, «zoe». Não se trata apenas do genérico «bios», mas de um «bios» que é claramente oposto à morte, uma vida do que recebe o seu padrão como movimento autónomo, corporal, mesmo “animal”, como isso que, na forma humana é, já, carne.

 

Esta vida inicialmente referida não deve ser confundida com a vida em carne que sucede após a «incarnação», 1, 14, mas como a própria definição concretizadora de isso que é o Deus metafísico-eterno: trata-se de um absoluto de vida. Perspetivando de outro modo: Deus é o absoluto de vida. A realidade metafísica de Deus, de isso que se opõe absolutamente ao nada é vida.

 

A vida passa a ser, então, interpretada não como projeção do humano sobre o divino, mas como isso que permite perceber o que é a vida humana e cósmica ambiente como parte especial do que é a vida infinita divina. A vida é, assim, o ato infinito que se opõe ao nada.

 

Nós sabemos isto: quando nos assalta a ideia da possibilidade da nossa aniquilação – não confundir com morte –, sabemos bem o que a vida, como absoluto, é, por contraste total com o que se nos apresenta como possibilidade de, precisamente, cessação total da vida, da «zoe».

 

Deus é esta infinita «zoe» em ato. O «Logos» é o mesmo ato como absoluto de possibilidade. A sua relação, eterna, é esse outro «Logos» que é o Espírito, relação atual entre o absoluto do real divino e o divino como possível. Mas o divino não é possível para si próprio, senão para o criado. Por isso, é pelo «Logos» que Deus cria, dando-se como possibilidade. Por tal, toda a possibilidade é, em si mesma, boa, pois toda é Deus, na forma de «Logos», oferecida ao poema próprio de um mundo possível.

 

O mal consiste na perversão da divina possibilidade de bem em realidade de não-bem ou de bem-menor. Aqui reside o sentido da ofensa contra Deus, pois é negação do «Logos» como possibilidade de bem. É matar o «Logos», algo que, como paradigma, o velho Job se recusou a fazer, contra as tentações da mulher e dos falsos amigos. Algo que Caim aceitara fazer, cumprindo a semente de perversidade que recebera de quem tinha rejeitado os infinitos bens para aproveitar do único mal anunciado.

 

No entanto, nada pode coisa alguma contra o absoluto da luz, da vida. Nada pode coisa alguma contra Deus. O mal é sempre o mal da criatura. O mal é sempre mal de quem o pratica. Eis o preço da autonomia total ética da criatura humana: todo o bem feito é monumento e memória ontológica do agente; todo o mal também. O bem é a imediata presença do céu em quem o pratica; o mal é a imediata presença do inferno em quem o pratica. A escatologia da ética coincide com a substância do ato praticado. É ilusão pensar-se que bem e mal recebem recompensa a si alheia ontologicamente: são, eles próprios, a sua mesma recompensa. O ato de Maria é o céu de Maria. O ato de Judas Traidor é o seu inferno; ou seria, não fora Deus em carne a própria misericórdia, porque o «Logos» é vida e a vida é a luz dos seres humanos.

 

O «Logos», eterno, não nasce; mas a pessoa de Jesus, essa nasce. Não nasce na carne, não nasce para a carne, não nasce, sequer, como carne. O que nasce é a pessoa de Jesus, carne do Verbo, realidade inusitada “desde” a eternidade e que o «Logos» experimenta neste «kairos» em que Maria dá licença a que isso que está na eternidade venha ao movimento e ao tempo, para que possa ser passível de humano entendimento segundo a carne, isto é, que possa ser visto, ouvido, tocado, saboreado e cheirado como todos os demais seres da mesma carnal dimensão.

 

Maria foi quem assim saboreou plenamente Jesus, como todas as Mães capazes. Mas, antes, saboreou-o como fruto do ventre, algo que se faz com o espírito, pois o fruto está para lá do alcance dos sentidos externos.

 

Maria é o natal humano do Verbo. Maria é, assim, o portal metamórfico entre o eterno e o tempo, pelo movimento que pôs em Jesus.

 

Mas o Natal do Verbo é também o Natal de Maria, que, quando o Verbo nasce, nasce como Mãe do Verbo.

 

Parir o Verbo: eis o Natal primeiro e litúrgico por excelência, sempre reacontecido não apenas memorialmente em cada «dia de Natal» oficial, mas sempre que cada ser humano pare um ato de bem, vida e luz, isto é, Deus na forma do ato-pessoa do Verbo.

 

Parir, como dar-à-luz o bem. Eis o Natal nosso de cada dia, o pão-nosso que deveríamos amassar e dar a comer.

 

Sempre bem-vindo sejas Pão Divino.

 

[©Américo Pereira]

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