A (boa) inquietude de cada dia desejemos hoje
Greves em setores basilares da sociedade, alterações climáticas, doenças…: a atualidade “oferece-nos” amplos motivos de inquietação, estamos, em graus diferentes e muitas vezes por boas razões, inquietos. E se por inquietação entendermos ansiedade, até angústia, apreensão ou pânico perante o futuro que se anuncia, problemas e preocupações que paralisam, trata-se seguramente de um estado de espírito que não se deve cultivar demasiadamente, sobretudo nos inícios de um novo ano.
Alguns filósofos apontam-nos, todavia, uma maneira positiva de considerar a inquietude. Para a compreender é preciso voltar à etimologia: a in-quietude é, literalmente, a ausência de repouso (“quies” ou “quietudo”, em latim), a incapacidade de estar saciado, de permanecer no estado de tranquilidade e serenidade daquele que nada tem a desejar.
Nicolas Malebranche e Santo Agostinho explicam que, nesta vida, não podemos não estar inquietos. Segundo eles, somos animados, conscientemente ou não, por um desejo que é fundamentalmente desejo de Deus, do infinito, do «bem em geral». Ora, os objetos e bens que se nos oferecem no mundo são todos finitos, limitados, e por isso revelam-se estruturalmente inadequados para preencher esse desejo.
No princípio das “Confissões”, escreve Agostinho: «Fizestes-nos para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto (“inquietum”) até que repouse (“requiescat”) em ti».
Não será antes preferível assumir na alegria, com Malebranche e Agostinho, a vitalidade positiva desta busca de infinito, mais do que resignar-se à enfadonha perspetiva de uma vida em que foi afastado todo o apetite e todo o desejo?
Malebranche acrescenta: quaisquer que sejam as nossas escolhas e os nossos amores, a nossa alma está «sempre em ação e jamais contente (…), sempre inquieta, porque ela é levada a procurar o que nunca poderá encontrar, e que espera sempre encontrar».
A lei do nosso desejo é portanto estar sempre inquieto, como que governado por aquele que se poderia denominar o “princípio Rolling Stones”: «I can’t get no satisfaction».
Esta inquietude tem a sua face negra: a agitação erigida em norma de vida, o desassossego permanente, e tão característico da nossa modernidade, dessas pessoas perdidas, desorientadas, sempre à caça da última novidade, dispersas, esquartejadas por desejos concorrentes e até contraditórios, ricocheteando às cegas, como bolas de “flipper” loucas, de desejos em prazeres, incapazes de ficar quietas.
Vemos, por exemplo, este género de inquietude a manifestar-se nos dias de saldos ou da “Black Friday”, quando se é arrebatado por um ilusório frenesi consumista – como se a acumulação compulsiva de objetos finitos pudesse preencher o nosso desejo de infinito.
Mas mais positivamente, esta inquietude é também o que nos impede de repousarmos preguiçosamente nos macios louros de um contentamento fácil ou apoiados em bens adquiridos. Ela insufla-nos o que Malebranche chamava, numa bela expressão, o «movimento para ir mais longe», ela estimula-nos, faz-nos conceber projetos, torna-nos curiosos, orienta-nos para um futuro concebido como desejável.
Blaise Pascal escrevia: «A nossa natureza está no movimento. O repouso total é a morte». Estar inquieto (sem repouso) indica por isso que estamos bem vivos, e o desejo é, também, a marca da expansão dos nossos seres.
Não será antes preferível assumir na alegria, com Malebranche e Agostinho, a vitalidade positiva desta busca de infinito, mais do que resignar-se à enfadonha perspetiva de uma vida em que foi afastado todo o apetite e todo o desejo?
2019 está aqui. Que nos desembaracemos da ansiedade e da apreensão e, ao mesmo tempo, que nos animemos da boa inquietude que dinamiza as nossas existências.
[Denis Moreau | In La Vie]