As águas de Deus
Há um elemento natural dominante na cena do Batismo de Jesus: é a água do rio Jordão, que brota de uma nascente no monte Hérmon, na fronteira com o Líbano, atravessa o lago de Tiberíades e percorre a Terra Santa para terminar o seu curso no mar Morto. Parece que as águas do rio não se resignam a morrer naquela bacia de água salgada e em evaporação: para cobrir os 104 km em linha reta entre os dois lagos, Tiberíades e Morto, o Jordão precisa de mais de 330 km. Há um sugestivo aforisma rabínico que compara os dois lagos ao amor e ao egoísmo: o primeiro recebe as águas do Jordão e depois dá-as à região; o segundo, por seu lado, recebe-as e retém-nas, e é por isso que é denominado “Morto”, precisamente como aquele que não quer amar e dar.
A água é, em todo o caso, o sinal fundamental do Batismo cristão no seu dúplice valor de purificação e regeneração vital. Mas é também a substância principal que constitui o nosso corpo e que cobre o nosso planeta. Na página da criação que abre a Bíblia, as águas são apresentadas como a segunda obra criada por Deus, após a luz, naturalmente segundo uma conceção que reflete a ciência do tempo e que distingue as nuvens com chuvas, conservadas numa espécie de reservatório no alto dos céus, e as águas que estão sobre a superfície terrestre.
Leiamos então o passo do Génesis que – como acontece para a luz e a treva – supõe um ato de «separação» realizado por Deus. «Deus disse: haja um firmamento no meio das águas para separar as águas das águas. Deus fez o firmamento e separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão sobre o firmamento. E assim aconteceu. Deus chamou o firmamento céu. E foi noite e foi manhã: segundo dia. Deus disse: as águas que estão sob o céu recolham-se num único lugar e apareça o seco. E assim aconteceu. Deus chamou ao seco terra, e chamou a massa das águas mar. Deus viu que era coisa boa» (1,6-10).
O tema da água é cada vez mais central nos nossos dias, tanto que costuma dizer-se que as guerras futuras não serão combatidas pela posse do petróleo e das fontes energéticas, mas pela conquista de reservas hídricas. O papa Francisco, na “Laudato si’”, define o direito à água como «essencial, fundamental e universal», e proibir o acesso dos pobres à água potável «significa negar-lhes o direito à vida» (n. 30).
No livro do Génesis 1,2 lê-se: «O Espírito de Deus pairava sobre as águas». Estamos ainda antes da criação da luz e das águas, e eis que aparece o «espírito» (“rûah”) divino, um vocábulo que, por si próprio, em hebraico pode indicar também o «vento» fortíssimo que fustiga as águas caóticas do abismo, símbolo do nada que precede a criação. Mas é mais provável que o autor sagrado queira representar o espírito divino criador que irrompe precisamente no nada, retratado pelas águas tumultuosas, dando origem à Criação. As «grandes águas», sobretudo do mar, podem ser, na Bíblia, um sinal negativo que o Criador domina, tutelando a Criação da destruição (pense-se no dilúvio). Neste versículo, porém, destaca-se o domínio de Deus que elimina o nada e desencadeia a Criação.
[Card. Gianfranco Ravasi | In Famiglia Cristiana]