Amor encarnado no quotidiano

Razões para Acreditar 22 agosto 2020  •  Tempo de Leitura: 15

«O Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (Jo 1,14). É na pequena custódia da nossa história que o Santíssimo se (nos) expõe. O Mais Alto desce ao mais baixo dos lugares humanos. O Santo não desdenha sentar-se à mesa de pecadores e de mulheres de má vida. O Verbo cala-se na boca de uma criança que ainda tem de aprender a falar e na mudez de um condenado que já não tem direito à palavra. O Todo-Poderoso expõe-se, de facto, à mesquinhez e iniquidade do nosso julgamento. A Vida passa pela dura prova da morte. Atravessa, por isso, com pés de barro, os altos e os baixos da nossa condição, a sua graciosidade e as suas desgraças, as suas linguagens e a sua mudez, a sua fecundidade e a sua esterilidade, a sua justiça e a sua impiedade, a sua fé e a sua desconfiança. Memória e promessa, graça e esforço, silêncio e palavra, confiança e reconhecimento do dom da existência reencontram-se na história do Filho de Deus entre nós. Não o esqueçamos: é na carne e no sangue da nossa humanidade que o encontro entre Deus e cada homem e cada mulher se dá. E (só) assim continua a ser.

 

É arriscadíssima a sentença do Prólogo de S. João. E comovente. Porém, de tanto a ouvirmos e, talvez, de tanto a repetirmos, é possível que já não nos arrepie nem nos mova. Contudo, tudo o que dissermos sobre Deus que não nasça aqui e que não cresça a partir daqui, corre o risco de se tornar abstrato e de nos alienar. Deus-diz-de-si-como-Deus-para-nós na história e como história de Jesus de Nazaré. Por isso, é também na história, e cada qual com a sua história, que haveremos de reconhecer Deus e de o amar com todo o nosso coração, com todo o entendimento, com todas as forças. E, é também por isso que não bastará olhar para o alto do céu ou perscrutar o íntimo de nós mesmos para justificar a não realização desse amor na escrita quotidiana da nossa biografia, sabendo que esta ocupa um espaço, habita um tempo, fala uma língua. E tece-se no cruzamento de tantos encontros e, quem sabe, também de tantos desencontros.

 

Porque razão haveríamos nós de menosprezar ou desprezar aquilo a que Deus devota tanto cuidado? Porque seria mais perfeito o nosso amor se não amássemos a criação e a vida e a liberdade, quando tudo tão generosamente nos foi dado e quando tudo, de novo, nos foi restituído a tão caro preço?


É tanto, mas é, ainda, muito pouco, pensar Deus como absoluto que subsiste por si. E, talvez, de pouco nos sirva imaginar um amor perfeito e puro, que, na realidade, não tem, nem lugar nem realização. Como nos pode testemunhar a história do pensamento e da espiritualidade, estas palavras e desejos não são sem ambiguidade. Pensemos, por exemplo, na palavra absoluto. É absoluto o que é livre de qualquer laço ou relação (o que é só por si e para si, desde sempre e para sempre), tal como é relativo o que está em relação (o que se diz e se realiza nos vínculos que estabelece). Mas, se assim é, para dizer Deus que se dá a conhecer em Jesus, não nos basta dizer que é absoluto. Quando o Verbo do Pai, por obra do Espírito, se faz carne no seio de Maria, o absoluto, que, como trindade, já é geração e relação, faz-se relativo, dizendo de si no afeto que nos dedica e no laço que estabelece connosco. Não se nos impõe como se a nossa liberdade não existisse. Pelo contrário, faz-se presente enquanto se nos dá e, dá-se, correndo o risco de se expor à qualidade dos nossos afetos, ao discernimento da nossa inteligência, à disposição – ou indisposição – da nossa liberdade. Sem esta, é como se Deus (ainda) não existisse. Não se revela, por isso, fora da relação que estabelece connosco: não sem a carne e o sangue das nossas existências-situadas-no-mundo; não sem todas as coisas que vemos, ouvimos, tocamos, saboreamos e cheiramos, nem sem o drama quotidiano dos nossos afetos e das nossas liberdades; não sem os símbolos culturais e instituições pelos quais aprendemos a ser homens e mulheres; não sem as metáforas das nossas múltiplas linguagens, nem sem a criação das nossas artes ou as indagações críticas do nosso pensamento. Sobretudo, não sem todos aqueles e aquelas que cruzam o nosso caminho, na maior parte das vezes, de modo inesperado. É assim que, na história de Jesus, Deus e humanidade se encontram realmente e intimamente – sem separação nem confusão –, para não mais se separarem. O Ressuscitado, que viveu entre nós e morreu pelas nossas mãos, sobe ao Pai conservando em si as marcas da sua paixão por nós. Tendo-se feito homem, é na nossa humanidade que nos ama. E é só assim que nós, como homens e mulheres, o poderemos amar. Porque razão haveríamos nós de menosprezar ou desprezar aquilo a que Deus devota tanto cuidado? Porque seria mais perfeito o nosso amor se não amássemos a criação e a vida e a liberdade, quando tudo tão generosamente nos foi dado e quando tudo, de novo, nos foi restituído a tão caro preço?

 

Sim, só Deus pode ser amado com todas as forças e com todo o entendimento. Nada nem ninguém, por muito que o quisessem, e mesmo declarando a sinceridade de intenção, poderiam garantir, sempre e em qualquer lugar, o reconhecimento dos afetos mais íntimos, dos desejos mais sinceros de um outro


Quando o vazio e a ausência desenham e nos restituem outras formas de presença de Deus, olhemos, pois, para Jesus, a história mais conseguida de uma vida humana. Deixemo-nos tocar pelo estilo da sua presença e pela qualidade das suas relações. Vejamos como toca e se deixa tocar, como se aproxima e se afasta, como acolhe e como contesta, como toma a palavra e como faz silêncio. Reparemos como nasce, como vive e como morre, e como, pela autenticidade da sua vida, testemunha que a nossa vida é a maior bênção com a qual Deus nos assinala desde a criação do mundo. Experimentemos como está no mundo e como o sente. Vejamos, pois, o que faz e como faz. Ouça mos o que diz, mas prestemos também atenção ao modo como diz e ao timbre da sua voz. Reconhece remos que é fazendo assim, entre nós e connosco, que Jesus de Nazaré diz Deus. E é dizendo Deus deste modo que realiza a nossa salvação – resgata-nos de todas os medos e desconfianças para que a vida floresça, de novo, e amadureça todas as promessas que traz consigo.

 

Contemplando Jesus nos Evangelhos – as narrativas do modo como realiza a história da sua liberdade entre nós e o modo como os discípulos o reconhecem como Messias –, saberemos que, com a inteligência dos nossos afetos e com a sensibilidade da nossa inteligência, nada do que é nosso, por mais pobre ou por mais rude que seja, nem nenhuma língua, são indignos de dizer Deus. Se já pela criação tudo tem o toque de Deus, pela encarnação do Verbo, tudo é confirmado como sua bênção. E até os lugares infernais da sua ausência se abrem à possibilidade fecunda da Graça. A vida divina re-passa, de facto, os lugares vazios – todos os lugares – da nossa existência. Mas, contemplando Jesus, saberemos, também, que é na qualidade das nossas relações que, em última instância, se decide o peso da nossa existência. Contra todos os cálculos e expectativas, é na decisão pela vida de um outro, correndo, se necessário, o risco de perder a própria, que a vida divina brilha na nossa. É diante de alguém que tem fome e sede, que está na prisão ou no hospital, que precisa de roupa ou de acolhimento que a vida de qualquer ser humano se decide (lembremos Mt 25, citação à qual nos convém regressar continuamente). Nestes lugares de periferia, e mesmo sem ser explicitamente reconhecido, Deus encarna-se, tanto no excesso de indigência de quem reclama misericórdia, como no excesso de compaixão de quem a manifesta. O que pareceria impossível é confirmado em Jesus: para cada homem e para cada mulher, crente ou não crente, o que está entre morte e vida – pode ser abismo ou ponte – é um excesso, uma possibilidade de superação de si a favor de um outro.

 

Amar a Deus com todo o coração, significará amá-lo como o amor de todos os amores (entre pais e filhos, entre amado e amada, entre amigos, entre quem pede e quem dá), o laço de todos os afetos, a compaixão de todos os encontros, a esperança de todos os lugares, a fecundidade de todas as artes. Amá-lo significa reconhecer que sem Ele não podemos viver; que, não o possuindo como coisa nossa, o temos da nossa parte


Pela encarnação do Verbo, como pode ressoar, então, esse apelo à escuta de Israel e à nossa própria escuta: «O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Ama rás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6,4-5)? Sim, só Deus pode ser amado com todas as forças e com todo o entendimento. Nada nem ninguém, por muito que o quisessem, e mesmo declarando a sinceridade de intenção, poderiam garantir, sempre e em qualquer lugar, o reconhecimento dos afetos mais íntimos, dos desejos mais sinceros de um outro. Em qualquer momento, poderiam deixar de estar à altura das próprias promessas e das expectativas alheias. Por isso, não é justo, sequer, colocar sobre alguém ou alguma coisa esse peso que, simplesmente, nada nem ninguém pode suportar. Só Deus pode ser amado com todo o coração, porque só Ele pode garantir-nos a vida e reconhecer-nos plenamente no mistério que somos. Porque é Ele a origem desse dom que não podemos dar-nos por nós mesmos. E, porque é Ele a plenitude e o reconhecimento do que, com esse dom, pudermos e soubermos realizar.

 

Dito isto, seria ainda pouco pensar em Deus como o primeiro amor, ou o maior, entre muitos outros amores. Desse modo, Deus ainda seria um entre tantos, mesmo sendo o maior ou o primeiro entre todos. Seria ainda o absoluto, desligado de nós, aquele que, mesmo que benignamente nos atraísse, continuaria a despertar desconfiança, ressentimento e concorrência. Pelo contrário, amar a Deus com todo o coração, significará amá-lo como o amor de todos os amores (entre pais e filhos, entre amado e amada, entre amigos, entre quem pede e quem dá), o laço de todos os afetos, a compaixão de todos os encontros, a esperança de todos os lugares, a fecundidade de todas as artes. Amá-lo significa reconhecer que sem Ele não podemos viver; que, não o possuindo como coisa nossa, o temos da nossa parte. E, por isso, lhe podemos dizer que permanece para mim um outro e que me é necessário, dado que o que eu sou de mais verdadeiro é o que existe entre nós. É entre-nós e entre-tanto-e-tantas coisas que o nosso amor a Deus se desenha e realiza. Assim, não será amado sem amores e sem afetos, sem encontros, sem lugares e sem artes. Pelo contrário, é nesses amores e afetos, nesses encontros, lugares e artes que Deus é amado. Sim, com todo o coração e com todas as forças. Cada pessoa, cada circunstância, cada elemento do mundo é, de facto, lugar da passagem e do encontro com O-sempre-presente. Neles, o nosso amor A-Deus.

 

[José Frazão Correia | In A fé vive de afeto, ed. Paulinas]

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