Cântico dos Cânticos: O jardim do amor da Bíblia

Razões para Acreditar 19 outubro 2020  •  Tempo de Leitura: 4

No admirável poema do Cântico dos Cânticos reencontramos o jardim “paradisíaco” das origens (Génesis), mas transfigurado num símbolo de amor. Na página que vamos evocar ocorre o raro vocábulo “pardes”, “paraíso” (só três vezes no Antigo Testamento), assente na descrição do jardim do Éden. Estamos no capítulo quarto.

 

Diz o amado à sua mulher: «Os teus rebentos são um paraíso de romãzeiras, com os frutos mais deliciosos, árvores de “cipro” e nardo, de nardo e açafrão, de canela e cinamomo, com toda a espécie de árvores de incenso, mirra e aloés, com todos os aromas melhores» (4,13-14). A imagem coloca-se no interior de uma estrofe poética (4,12.5,1), na qual domina um diálogo entre ele e ela, os dois protagonistas do poema bíblico.

 

É antes de tudo o enamorado a cantar a beleza da sua mulher, e nas suas palavras é dominante, como se intui do fluxo integral dos versos, a imagem de um jardim irrigado por uma fonte e repleto de vegetação, um símbolo, aliás clássico, na poesia amorosa.

 

A comparação desenvolve-se num crescendo que, no final, transforma o canto do esposo num dueto com a esposa. O jardim está unido a uma fonte, e ambos estão selados, isto é, fechados aos estranhos (cf. 4,12). Este tema é uma alusão bastante nítida à pureza da mulher, à sua fidelidade, à exclusividade da posse recíproca dos dois enamorados. A intimidade não deve ser violada, mas só doada por amor.

 

Entrado no jardim “paradisíaco”, o amado descobre o decálogo de árvores, sinal de plenitude acima citado, com um eflúvio semelhante a uma nuvem aromática. O homem continua a retomar o sinal da «fonte que banha os jardins, poço de água viva que jorra do Líbano» (4,15).

 

O oásis fechado é aberto pela própria mulher: o selo da fonte é rompido, e o esposo é chamado a alimentar-se dos frutos deliciosos e exaltantes do amor


A mulher é para o homem como uma fonte de águas abundantes e fresquíssimas, alimentada pelas neves da cadeia montanhosa do Líbano. A força desta comparação deve ser entendida no contexto do ensolarado e sequioso panorama da terra de Israel. No itinerário muitas vezes áspero e desolado da vida, o amor é como um poço a que se chega para se ficar dessedentado e revigorado.

 

Esta simbologia do jardim “paradisíaco” como ventre fecundo, como refúgio de paz e como oásis que oferece frutos e bebidas, remeteu com frequência os leitores judeus e cristãos do Cântico para Sião [Jerusalém]. Apesar de a cidade estar sobre uma colina árida e pedregosa, é vista pelo Saltério como um jardim perfeito no qual Deus acolhe o ser humano e o enche de bens e consolações (cf. Salmo 46).

 

No diálogo do Cântico dos Cânticos intervém, no final, a mulher (cf. 4,16), com um apelo de grande poder poético dirigido aos ventos frios setentrionais e aos quentes meridionais, para que a envolvam a ela e o seu jardim, de maneira a fazer exalar em toda a sua intensidade os aromas nele ocultos.

 

Todo o mundo no seu eixo vertical Norte-Sul concentra-se em torno a este jardim-paraíso, no qual o amado é convidado a entrar. O oásis fechado é aberto pela própria mulher: o selo da fonte é rompido, e o esposo é chamado a alimentar-se dos frutos deliciosos e exaltantes do amor.

 

O homem responde acolhendo com alegria o convite (cf. 5,1). Ele está agora no jardim do amor. Aqui ele se deixa seduzir pelos perfumes, aqui ele é revigorado pelo mel, aqui ele é dessedentado por um leite dulcíssimo e por um vinho generoso. A esta mesa de amor, que cura todo o limite e toda a fraqueza, ele está sentado como um príncipe.

 

[Card. Gianfranco Ravasi | In Famiglia Cristiana]

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