Economia de Francisco: Fraternidade acima da meritocracia
O futuro da fé cristã está ligado à capacidade das comunidades cristãs darem corpo ao sonho de Jesus, o sonho do Reino de Deus. As intuições e provocações devem tornar-se educação, sob pena de o cristianismo se tornar insignificante. Parece-me que hoje as nossas comunidades jogam a sua força profética na relação com os bens.
É indispensável, antes de tudo, intensificar a ação formativa a partir dos adolescentes e jovens, integrando aquela relação no itinerário normal da iniciação cristã e da catequese. Os percursos sobre a educação afetiva e sobre a educação económica andam de mão dada, porque se tratam de dimensões do mesmo estilo de dom e partilha, reciprocidade e gratuidade.
A catequese cristã não pode ignorar a atitude evangélica que está na base dos dois braços da ética, a denominada individual e a social: distinção que tem de ser superada, porque é “social” também a educação sexual, e é “individual” também a educação económica e ecológica. O respeito pela vida nascente e morrente deve andar a par com o respeito pela vida marginalizada e indigente; a paz e a não-violência nas relações entre homem e mulher vão de mão dada com a paz nas relações sociais e internacionais; a castidade – isto é, o respeito pelo outro e a recusa da exploração – nas relações sexuais é simultânea à castidade nas relações sociais, étnicas, ambientais e inter-religiosas.
Competitividade, lucro, competências: estas palavras, que em conjunto formam o conceito de meritocracia, não são, decerto, iníquas, mas tornam-se quando se proferem fora do contexto concreto
Uma das experiências pastoralmente mais dolorosas é ver as nossas comunidades cristãs divididas naquilo sobre o qual deveriam manter-se unidas, melhor, profundamente enlaçadas. Feria-me, primeiro como pároco e agora como bispo, registar no povo de Deus – inclusive em nós, ministros – uma espécie de fratura vertical entre quem leva por diante os valores da pessoa e da família, e quem empunha o porta-estandarte da sociedade e do ambiente natural. Se somos verdadeiramente católicos, não podemos adotar a disjunção, mas a conjunção.
Enquanto a vigília pela paz for de esquerda, e rigorosamente frequentada exclusivamente por católicos “progressistas”, e a vigília pela vida for de direita, e reservada de facto aos católicos “tradicionalistas”, a Igreja permanecerá dividida. Enquanto o Dia da Criação for de esquerda e o Dia da Família de direita, continuaremos a ferir-nos uns aos outros. Uma coisa é a maior sensibilidade por uma ou pela outra dimensão ética cristã – sensibilidade que despende das histórias pessoais e dos desafios da história –, outra é a absolutização de uma só dimensão, transformando inevitavelmente a pertença católica numa batalha “contra” outros católicos.
Este panorama não surpreende, porque desde os tempos de S. Paulo as comunidades estavam divididas, como demonstram os partidos de Corinto (cf. 1 Coríntios 1,12); e se não surpreende, também não deixa de magoar. A divisão tira força interior à evangelização. «Tudo esta ligado», «tudo está em relação», numa espécie de fraternidade universal, como repete a “Laudato si’”: relação com Deus, sexualidade, família, pobres, justiça, trabalho, paz, salvaguarda da criação… São temas transversais que interagem.
«A fraternidade infringe a lei de qualquer regime que comporte discriminação e opressão»
No caso específico da formação respeitante à economia, é preciso educar para o dever e para o interdito: os deveres derivam de um uso casto dos bens, que são sempre meios, e nunca fins, e da necessidade da sua partilha, do controlo dos investimentos para que não favoreçam transações ilícitas e imorais, como as de armas, a proibição da especulação e do jogo, o dever de pagar os impostos, o dever do respeito pela criação, a par de uma visão crítica da denominada meritocracia, do “deus incentivo”, do dogma da eficiência, produtividade, rendimento e competitividade, os quais produzem os “descartados”; para afirmar, em vez disto, a cultura da honestidade, do dom e da misericórdia, que dá espaço também àqueles que não são vencedores e não são capazes de competir.
Competitividade, lucro, competências: estas palavras, que em conjunto formam o conceito de meritocracia, não são, decerto, iníquas, mas tornam-se quando se proferem fora do contexto concreto. Uma certa dose de competitividade é necessária e favorece a qualidade; o lucro, quando é proporcional ao trabalho, representa um elemento da sua dignidade, porque «o trabalhador é digno do seu salário» (Lucas 10,7); a competência, que se apoia nos talentos de cada pessoa, é essencial para uma reta e ordenada distribuição e eficácia do trabalho.
O problema surge quando estas palavras se tornam discriminatórias para aqueles que não estão em condições de competir, não usufruem de lucro algum, e não têm os meios para desenvolver os seus talentos. «O mérito pode desempenhar uma boa função numa sociedade que já é justa, mas nas sociedades ainda não justas (e são as reais), a meritocracia, o governo do mérito, amplifica as injustiças. E é precisamente a fraternidade que faz a ponte entre uma pobreza a combater e uma pobreza a resgatar. Como escreve Edgar Morin: «A fraternidade infringe a lei de qualquer regime que comporte discriminação e opressão».
[D. Erio Castellucci, Arcebispo de Modena-Nonantola (Itália) | In Avvenire]