“The undoing”: O «eu» sobre o «tu» que ignora o «nós»

Razões para Acreditar 6 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 9

Um dos traços mais originais da reflexão do papa diz respeito à identidade e organização da Igreja: Francisco insiste em desenhar os elementos de uma Igreja sinodal, em saída, que habita o mesmo mundo, a mesma «casa comum», a «mesma barca» do ser humano, de todos os seres humanos. Uma mensagem que se tornou ainda mais repetida nos meses marcados pela pandemia e pelas suas consequências. Também o recente convite aos políticos para superar o «eu», porque o tempo é do «nós», pode assentar como uma luva a uma Igreja que deve tornar-se sempre mais intérprete da teologia do povo de quem partilha sofrimentos e esperanças.

 

Ao mesmo tempo, a Igreja é chamada a reequilibrar os fortes impulsos para a atomização, individualismo e autorreferencialidade que com frequência se resolvem na sistemática redução do outro a elemento puramente ornamental de um horizonte ético que só se reflete a si próprio. Em dezembro de 2006, a revista “Time” elegeu como personagem do ano “you”, o utilizador que, refletindo-se no ecrã do computador, teria conseguido, através da internet, criar novas formas de relação e socialidade. À distância de anos, enquanto vivemos um período no qual grande parte das nossas relações são forçadas a passar por uma qualquer forma de mediação digital, é evidente o paradoxo daquela capa: cada leitor, diante daquele espelho-ecrã, não via os outros com quem estreitar uma relação, mas apenas a sua imagem refletida. Na era das grandes comunicações, o indivíduo encontra-se paradoxalmente só, a olhar a sua imagem construída digitalmente. Uma imagem que, como diria Roberto Benigni, não se assemelha a mim em nada.

 

Mulheres e homens profundamente sós e desconhecidos uns dos outros são os protagonistas de “The undoing”, série de televisão produzida pela HBO, que chegou a Portugal em outubro. Os episódios seguem a vida aparentemente perfeita de um casal da “upper class” nova-iorquina formado pela psicóloga Grace Fraser, interpretada por Nicole Kidman, e pelo médico oncologista pediátrico Jonathan Fraser (Hugh Grant, com uma personagem distante dos papéis que o tornaram célebre).

 

Enquanto se desenrolam indícios e suspeitas, a série procura concentrar-se também, se não sobretudo, naquelas verdades ocultas evocadas desde o título, e que lentamente vêm à luz


Têm um filho adolescente, inscrito numa pequena mas exclusiva escola particular. Uma vida envernizada, repleta de "glamour", na qual o sucesso económico e profissional é acompanhado pela estima e consideração social: Grace surge sempre compreensiva, acolhedora, boa. Já Jonathan é irónico, empático, arguto, apesar de o seu trabalho o colocar constantemente em contacto com a morte e o sofrimento das crianças.

 

Desde logo, porém, entreveem-se fendas nesta narrativa: o desaparecimento da exuberante e desinibida Elena Alves, interpretada pela jovem Matilda De Angelis, perturba profundamente o protagonista. Grace não perde a ocasião para criticar em privado, com amigas ou com o marido, os comportamentos de Elena que, pelo contrário, publicamente acolhe e justifica. Esta hipocrisia, que seríamos tentados a reduzir a desconfiança por causa da distância entre estratos sociais ou devido à inveja pela beleza da jovem (nada é deixado à imaginação), aponta para algo de mais complexo e instila a dúvida de a gélida perfeição de Grace poder ser mais exibição que realidade, que responda mais a critérios de aceitabilidade social que à verdade da pessoa. A situação precipita-se mais no momento em que Elena é encontrada morta e Jonathan é acusado de homicídio.

 

A autorreferencialidade do ser humano não é um tema exclusivo da modernidade. No Génesis, a fragilidade intrínseca do homem, como o material com que é formado, é intensificada pela solidão a que é relegado, apesar da proteção e da riqueza do jardim em que vive. Por isso, Deus quer dar-lhe uma «ajuda que lhe seja semelhante», ou melhor, «que lhe esteja defronte»


“The undoing”, de acordo com os regras do “thriller” psicológico, procura direcionar a atenção do espetador para novos detalhes, novos indícios, novas suspeitas que colocam em dúvida aquilo que anteriormente se acreditava ter sido compreendido. Do ponto de vista narrativo, apesar das numerosas reviravoltas, o mecanismo não é totalmente conseguido. Talvez porque, enquanto se desenrolam indícios e suspeitas, a série procura concentrar-se também, se não sobretudo, naquelas verdades ocultas evocadas desde o título, e que lentamente vêm à luz: em primeiro lugar, as relações, vidas sociais e familiares fundadas exclusivamente sobre uma narração autorreferencial de si, na qual o outro é sistematicamente reduzido a projeção das próprias expetativas, objeto de conforto, de reforço da autoestima, de espelho chamado exclusivamente a restituir a bela imagem social que esforçadamente se constrói.

 

Há todo um mundo que, apesar da vivência de relações familiares, amizades, paixões, na realidade é composto por mulheres e homens sós, aplicados no esforço titânico de construir-se uma imagem pública impecável e irremediavelmente não verdadeira. Este esforço é narrado muito bem pelos detalhes da série, desde o guarda-roupa de Grace às recolhas de fundos em que o casal participa. Emerge também da única inserção que “The undoing” propõe no mundo laboral da psicóloga: Grace está profissionalmente envolvida com um casal em crise que precisa de repensar a sua relação, aprendendo a reconhecer o parceiro na sua alteridade, e não como projeção das suas ideias ou desejos. Um ótimo conselho, a que se acrescentaria um evangélico: médico, cura-te a ti mesmo!

 

A autorreferencialidade do ser humano não é, todavia, um tema exclusivo da modernidade. Encontramo-lo até na primeiríssima página da Bíblia. No Génesis, com efeito, a fragilidade intrínseca do homem, como o material com que é formado, é intensificada pela solidão a que é relegado, apesar da proteção e da riqueza do jardim em que vive. Por isso, Deus quer dar-lhe uma «ajuda que lhe seja semelhante», ou melhor, «que lhe esteja defronte» (“’ezer kenegdô”), fórmula enigmática que pode ser compreendida segundo a difusão lexical do substantivo “’ezer” (ajuda), que surge na Bíblia em contextos em que a vida está em perigo. A ausência de relação condena o homem à solidão e, em definitivo, à morte. A criação da mulher, ao contrário, pode inaugurar um novo espaço relacional que permite a vida, impressa no nome de Eva, «mãe dos viventes», na medida em que o homem reconhece a alteridade que lhe está defronte. Não se trata de um projeto concluído, mas de um desafio sempre aberto. Já na resposta do homem «carne da minha carne», ou seja, dos meus ossos, será chamada mulher (“’iššâ”), porque do homem (“’iš”) foi tirada», podemos percecionar uma distância do projeto criador de Deus e o eco da tentação de reconhecer o outro a partir exclusivamente de si.

 

É uma tentação profundamente aninhada no interior da tradição ocidental, a partir do «conhece-te a ti mesmo» socrático. “The undoing” coloca-se exatamente nesta senda, colocando em cena os perigos de uma compreensão autorreferencial que não só não encontra o outro, como o reduz à projeção própria.

 

 
[Gian Paolo Bortone | In L'Osservatore Romano]

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