A adoração, gesto forte de Quaresma

Razões para Acreditar 15 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 12

Gostaria de vos conduzir ao deserto para aí adorar Deus. Sei bem que as vossas vidas são tomadas num turbilhão indiferente, por vezes inclusive hostil, à Quaresma e às suas exigências. Ao olhar para as nossas experiências passadas da Quaresma, receamos começar com fervor e terminar com a triste confissão de uma tibieza de trinta e nove dias, e até quarenta. Mas, ainda assim, gostava de vos conduzir ao deserto para seguir Jesus. Deixai-me tentar. Será que esta viagem cabe na vossa agenda?

 

Colocar-se na presença de Deus

Os meus alunos do seminário de Bertoua, nos Camarões, começam muitas vezes os seus tempos de oração por este belo e antigo convite: «Coloquemo-nos na presença do Senhor e adoremo-lo». Segue-se um tempo de silêncio, de duração variável, de onde brota uma oração vocal. E é verdade que para ir ao deserto e juntar-se a Cristo no tempo da Quaresma trata-se, primeiro, de fechar os olhos e de fazer silêncio em nós, para o adorar. É ao adorá-lo que o nosso coração de quaresma se separa de tudo aquilo que é exterior a ele, e que entramos nesta solidão repleta da presença de Deus.

 

É por isso que esta atitude de adoração deve estar no coração da nossa Quaresma, para que brotem uma generosidade e uma penitência verdadeiramente cristãs. Então, o que significa adorar? E como adorar?

 

Reconhecer que devo tudo a Deus: a adoração como atitude interior

 

A adoração é o ato interior através do qual me coloco na presença de Deus, reconhecendo, com a minha inteligência, o seu domínio absoluto sobre a minha vida. Resolutamente, volto durante a Quaresma o meu olhar para Deus, e reconheço que Ele é absolutamente primeiro, este Deus de Quaresma, e que tudo o que sou depende radicalmente dele. Posso mesmo afirmá-lo e dizer-lhe com as minhas palavras:

 

«Senhor, a minha vida depende inteiramente de ti. É de ti que eu a tenho com tudo o que sou. Para além de todas as riquezas que possuo, sei e proclamo que não seria nada sem ti. Que eu não seria. Prostro-me diante de ti, para me oferecer a ti e entregar entre as tuas mãos».

 

Viver esta oração de Quaresma é exprimi-la interiormente é colocar-me na relação mais fundamental e mais verdadeira a respeito de Deus. A adoração de Quaresma é a atitude interior que me volta a colocar “no diapasão” do mistério de Deus, e que recoloca a minha vida na sua verdadeira perspetiva. Antes de qualquer outra ação, ser e dizer a verdade sobre a minha vida durante a Quaresma é adorar e reconhecer a majestade amante de Deus, reconhecendo que lhe devo tudo.

 

Da adoração ao abandono

 

Ao adorar Deus, particularmente durante a Quaresma, reconheço que Ele me criou em toda a liberdade, sem ser obrigado, para me comunicar o seu amor. A dependência que tenho dele, Ele que possui sobre mim todos os direitos, não produz em mim nem angústia nem alienação. Ao contrário, é fonte de uma imensa confiança de Quaresma e de um abandono. Só nos podemos abandonar a quem cuida de nós e que nos é benevolente.

 

O Deus todo-poderoso de quem descobrimos a transcendência absoluta na adoração de Quaresma é também, e na mesma medida, um Deus que tem um amor infinitamente próximo, mais íntimo a mim que eu próprio. E dizemos-lhe:

 

«Senhor, entrego-me inteiramente entre as tuas mãos. Eu sei que Tu me amaste primeiro, e que tudo o que sou é um dom do teu amor. Tu tiraste-me do nada para fazer de mim o teu filho bem-amado. Tenho confiança em ti e coloco toda a minha vida entre as tuas mãos, porque te amo».

 

Rezar para nos aproximarmos do mistério

 

Quando eu o adoro desta maneira, aproximo-me do mistério de Deus mais profundamente do que qualquer outra oração que seja da minha iniciativa. As outras formas de oração, o louvor ou a petição, por exemplo, dirigem-se a Deus sob um determinado aspeto: Ele é digno de louvor, Ele pode conceder uma graça. A adoração não considera Deus sob um “ângulo” particular: ela vê-o naquilo que Ele é nele mesmo. Ela faz-me perceber que só Ele é absolutamente primeiro, e que tudo o resto, mesmo aquilo que me é mais querido, mesmo a minha própria vida, mesmo os meus maiores desejos, lhe são relativos.

 

Esta primazia de Deus na minha vida, que coloca todas as outras coisas no seu lugar certo, introduz a paz.

 

Quando adoro em tempo de Quaresma, entro no deserto, porquanto me separo interiormente de tudo o que não é Deus. Exteriormente, como é óbvio, a minha imaginação continua a divagar e o mundo exterior não é modificado. Mas a minha inteligência e o meu coração estão como que enclausurados em Deus.

 

O próprio príncipe deste mundo, Satanás, pode fazer ruído no exterior para me desviar da adoração, provocando a minha imaginação! Mas ele não entra na minha adoração. Através dela, eu torno-me uma terra sagrada que nada pode pisar, a não ser unicamente Deus, a quem a ofereço durante a minha Quaresma.

 

A adoração para lutar contra o orgulho e ganhar a paz

 

Em contrapartida, quando eu deixo de adorar, esqueço progressivamente o sabor, o gosto de Deus. As minhas obras podem ser belas, mas a sua raiz está deteriorada, e aos poucos perco a sensibilidade para as coisas divinas, a sensibilidade dos santos.

 

Muito depressa, então, volto a cair na agitação. Deixo de saber bem para onde vou: torno-me um errante. Tendo perdido a minha finalidade, arrisco-me a adorar ídolos, os mais grosseiros como os mais subtis: os bens terrestres, a minha aparência, a minha inteligência, a minha superioridade em certos domínios, etc. A idolatria é a consequência e a manifestação imediata do orgulho.

 

O orgulho é a atitude radicalmente oposta à da adoração. De uma maneira muito prática, o orgulho faz com que me considere como o primeiro, excluindo os demais, e instala na minha vida uma ordem falseada.

 

Naturalmente, é raro que eu o exprima tão claramente a mim mesmo, mas na prática Deus só vem depois dos meus próprios desejos. Enquanto a adoração me coloca na paz ao restabelecer a ordem da minha vida a partir de Deus, o orgulho mergulha-me na agitação e na desordem, instalando uma ordem pervertida, onde Deus deixa de estar no primeiro lugar. Ao deixar de adorar, perco o sentido da minha finalidade. Estou, então, à mercê de todos os ventos contrários. E deixo até de me dar conta disso.

 

Entrar no deserto para viver o tempo da adoração

 

A Quaresma é o tempo em que entro no deserto para – muitas vezes na luta – voltar à oração de adoração que o orgulho, sem eu me dar conta, tornou insípida. Pela adoração de Quaresma, constato, na prática, que entre a graça de Deus e o meu pecado não há zona neutra na qual eu possa viver humanamente sem Deus e sem pecar. Posso, através da adoração, oferecer a minha vida à ação de Deus, ou, não adorando, afastar-me da ação divina. «Quem não está comigo está contra mim», diz Jesus (Lucas 11, 23).

 

Os esforços que faço no período da Quaresma, as privações de Quaresma que permito, são atos pelos quais quero significar que ofereço a minha a Deus, preferindo-o a tudo o resto. Se esqueço isto, os “esforços de Quaresma” tornam-se uma espécie de obrigação moral, da qual se esqueceu a finalidade profunda. E essas resoluções, muito depressa, caem…

 

Jesus, o adorador por excelência

 

O Pai enviou-nos o seu Filho, Jesus, que é o adorador por excelência. Em toda a sua vida, e sobretudo na cruz, Jesus é aquele que adora «em espírito e em verdade» (João 4, 23). Enquanto a minha adoração é frágil e está constantemente a recomeçar, a de Jesus está repleta e arde de caridade.

 

Jesus veio até anos para nos dar acesso à sua própria adoração. Agora, na fé, eu adoro o Pai com Jesus. O seu coração está-me aberto, e a sua adoração é o tesouro do qual eu tiro para meu bem. Com Maria, adoro Jesus, com Jesus adoro o Pai e o Espírito Santo.

 

«O Pai procura adoradores», diz Jesus à samaritana (João 4, 23). É o único lugar em toda a Escritura onde se diz que «o Pai procura» alguém! Por isso, não tardemos mais: adoremos.

 

Em todas as circunstâncias, adorar

 

A adoração é um ato voluntário: posso adorar Deus quando quiser, em todas as circunstâncias.

 

Posso dizer-lhe: «Senhor, eis-me na tua presença, e reconheço que Tu és o primeiro na minha vida. Tu és o meu Deus, o meu criador e o meu Pai, e eu entrego-me entre as tuas mãos. Toma a minha vida e tudo o que me pertence, porque eu amo-te e só quero pertencer a ti».

 

Este ato pode durar um minuto; um pouco menos ou muito mais, segundo as circunstâncias.

 

De manhã, ao levantar, a adoração pode ser o primeiro ato que dá a sua cor ao meu dia. Da mesma forma, à noite, ao deitar. E porque não durante o dia, entre duas atividades, por exemplo? Para me ajudar, posso fixar vários encontros horários por dia.

 

Se as circunstâncias o permitirem, posso pôr-me de joelhos, como Moisés prostrando-se diante de Deus. Se não, no meu coração prostro-me e recolho-me um instante até que tenha colocado Deus no seu lugar, no centro da minha vida.

 

E desta maneira, depondo atos de adoração, tornou-me, aos poucos, um adorador.

 

[Ir. Jean-Hilaire Ardillier | In Famille Chrétienne]

tags: Quaresma, Snpc

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