Da contemplação de Cristo na cruz à contemplação de Cristo...
Não consigo não pensar o tempo da Quaresma a não ser como um espaço no qual temos fixado o olhar em Jesus, enquanto tudo o resto passa para segundo plano. Não porque queremos remover o espetáculo desolador das nossas contradições, das nossas mentiras, da fragilidade de nós próprios e das instituições, não, nada disso; mas porque devemos vê-las como Ele as vê, do seu próprio ponto de vista. De outra maneira, a nossa reflexão, começando em nós, terminaria também em nós, emaranhando-nos em nós mesmos ainda mais do que já estamos, pregando-nos à nossa autorreferencialidade.
Ajuda-me uma palavra de Catarina de Sena: os cravos tornar-se-ão chaves. Contemplamos Cristo, que extingue em si mesmo a inimizade, carregando os nossos pecados no seu corpo. Gostaria de observar a plasticidade destas imagens, o seu carácter físico: é um corpo aquele que temos diante de nós, o de Jesus, síntese de todos os corpos feridos e ultrajados. É Ele o Abandonado, o Não-Amado, o Desprezado: se tantos são assim, é porque também o reduzimos a Ele, ou negando-o ou honrando-o só com os lábios. A dor do mundo é fruto da recusa dEle, inclusive da parte dos seus; por isso teremos sempre os pobres connosco, ícones vivos daquilo que lhe fizemos.
O pecado, portanto, é a minha lança que entre no seu corpo, são os meus cravos que o ferem, na sua própria carne. Mas Ele transforma estes cravos, estes golpes, em chaves que abrem e assim revelam a sua fidelidade até ao fim. Daquelas feridas sai o sangue e a água: aquele sangue que diz e sintetiza todos os sangues da História, toda a dor do ser humano, o inocente e também o culpável, do justo Abel a todos os “Abeis”; e aquela água, de onde brota, cura. Jesus escolhe o pior de nós, aquilo que a todos acomuna, isto é, o pecado e a morte, para as acolher em si mesmo; derrota o Divisor com as suas próprias armas.
E assim conhecemo-nos a partir dEle, como somos por Ele conhecidos: homicidas como Caim, e perdoados, numa justiça que supera verdadeiramente a dos escribas e dos fariseus, a da lei, acolhidos e buscados tal como somos, e não como devíamos ser, e comprados a altíssimo preço. E aqui pode realizar-se o milagre: a nossa cura. Ferimos porque nós próprios estamos feridos; somos arrancados da dinâmica perversa através da qual descarregamos nos outros aquilo que nós sofremos. E assim amamos, porque Ele nos amou primeiro. Daqui pode começar a fraternidade, que é o nosso futuro, não o nosso passado. Agora podemos aquilo que antes não podíamos: vigiar e orar junto de quantos estão abandonados e excluídos, curar com a caridade aquela multidão dolorosa que bate às nossas portas, e da qual, por mil motivos, não nos dávamos conta.
Da contemplação de Cristo na cruz à contemplação de Cristo nas cruzes de muitos; e até da nossa. E daqui aprendemos a abraçar e a compadecer-mo-nos verdadeiramente do nosso próprio sofrimento, da nossa desprezada fragilidade, vendo-nos nele e a Ele em nós. Com as palavras de Bernanos: «Odiar-se é mais fácil do que se pensa. A graça consiste no esquecer-se. Mas se em nós morresse todo o orgulho, a graça das graças seria amar humildemente a si próprio, como qualquer outro membro sofredor de Jesus Cristo. Nisto consiste, a meu ver, essa humanidade reconciliada, essa profunda pacificação de nós próprios por meio dEle, que chamamos santidade.
[Ottavio De Bertolis | In L'Osservatore Romano]