Religião e ciência: Duplo olhar, a mesma seriedade
A ciência e a religião são duas das forças mais influentes na sociedade contemporânea. Alguns veem-nas como alternativas, em competição; mas alguém como eu, que é quer um ex-professor de ciências em Cambridge quer um padre anglicano, quer assumi-las com a mesma seriedade.
Estou orgulho do facto de que Cambridge tenha sido a primeira universidade do Reino Unido a atribuir uma cátedra em teologia e ciência.
A possibilidade de uma interação frutuosa entre ciência e religião nasce do facto de ambas estarem interessadas na busca de uma compreensão verdadeira, a alcançar através de crenças motivadas. Naturalmente, esta é uma afirmação filosoficamente contestada, mas a minha experiência científica encoraja-me a adotar a posição do “realismo crítico” em relação às intuições quer da ciência quer da religião.
O termo “realismo” significa a convicção de que podemos obter um conhecimento efetivo da natureza da realidade; enquanto a descrição “crítica” assinala que este conhecimento nunca está completo ou absolutamente certo, ainda que esteja suficientemente bem apoiado em provas para tornar o compromisso nele um ato racional.
Desanima-me ver algumas pessoas religiosas que recusam tomar a sério a verdade que a ciência tem para oferecer. O dom que a religião tem a oferecer à ciência não é o de responder às suas perguntas, mas para tomar as intuições das ciências e inseri-las num contexto de inteligibilidade mais amplo e profundo
A ciência e a religião olham para domínios diferentes de encontro com a realidade. A ciência tem a ver com uma dimensão objetiva, na qual as coisas podem ser manipuladas e os acontecimentos repetidos, tendo assim acesso à grande arma da verificação experimental. Contudo, todos sabemos que há muitos níveis de encontro com a realidade – quer o pessoal quer, diria, o transpessoal com a realidade divina – em que nem a manipulação nem a repetição são possíveis sem que se faça violência sobre a realidade encontrada.
Nunca escutamos um quarteto de Beethoven duas vezes da mesma maneira, mesmo se reproduzimos a mesma gravação. Neste âmbito pessoal a experimentação deve ceder o passo a algo como a confiança.
A diferença de domínios significa que a ciência e a religião colocam questões diferentes sobre a realidade: no primeiro caso como acontecem as coisas; no segundo se há significado, objetivo e valor no que acontece – questões que a ciência tende a excluir do seu discurso. Ciência e religião, portanto, completam-se mutuamente, mais do que serem rivais sobre o mesmo terreno. Para uma compreensão plena precisamos de ambos os modos de intuição.
Para dar um exemplo familiar, a chaleira está a ferver porque o gás aquece a água (processo) e porque quero fazer uma chávena de chá (objetivo). Alguns sustentaram que estas diferenças estão tão completamente separadas, que não têm nada a dizer uma à outra, mas eu acredito que este ponto de vista é errado. As suas perguntas são diferentes, mas as respostas dadas devem ser reciprocamente compatíveis. Voltando ao exemplo caseiro, colocar a chaleira no frigorífico colocaria em dúvida a minha intenção de fazer uma chávena de chá.
O universo demonstrou ser surpreendentemente transparente do ponto de vista racional e belo do ponto de vista racional. Trata-se apenas de uma sorte casual ou de um facto de grande significado? A ciência usufrui deste facto, mas não é capaz de explicá-lo
A busca comum da verdade torna a ciência e a religião amigas, e não inimigas, com dons a oferecer uma à outra. A ciência pode dizer à religião como são efetivamente a natureza e a história do universo, um dom a receber com gratidão, enquanto a teologia procura compreender o cosmo como uma criação divina.
Desanima-me ver algumas pessoas religiosas que recusam tomar a sério a verdade que a ciência tem para oferecer. O dom que a religião tem a oferecer à ciência não é o de responder às suas perguntas – porque temos todas as razões para esperar que as perguntas científicas receberão respostas científicas; mas para tomar as intuições das ciências e inseri-las num contexto de inteligibilidade mais amplo e profundo. (…)
O universo demonstrou ser surpreendentemente transparente do ponto de vista racional e belo do ponto de vista racional. Trata-se apenas de uma sorte casual ou de um facto de grande significado? A ciência usufrui deste facto, mas não é capaz de explicá-lo.
Descrevi um mundo que na sua profunda inteligibilidade poderia ser justamente descrito como atravessado por sinais da mente. Acredito que é totalmente razoável acreditar que é a mente divina do Criador que está por trás da maravilhosa ordem do cosmo.
Agrada-me dizer que a minha visão do mundo tem “dois olhos”: através da perspetiva da ciência e da religião. Uma visão binocular que me torna capaz de olhar para além daquilo que veria apenas com um olho. Devo assumir a ciência e a religião com a mesma seriedade.
[John Polkinghorne (1930-2021) | Físico matemático, teólogo | In Settimana News]