Deus ri com calma
O tema do humorismo na literatura religiosa não é certamente novo. Acreditamos, porém, que uma breve nota pode ajudar os leitores e manter viva uma dimensão fundamental da existência humana que, entre outras, parece estar em risco, em particular na nossa sociedade ocidental, na qual os conflitos e tensões quotidianas correm sempre o risco de radicalizar-se e exasperar-se, perdendo de vista a moderação oferecida pelo humorismo ou, poder-se-ia dizer com um termo quase equivalente, pela ironia.
Esperamos que o tema seja agradável, tendo em conta que de humorismo todos precisamos, inclusive os cultores de ciências laicas, como os economistas. A prestigiada revista inglesa “The Economist”, por exemplo, escreveu que a tarefa da economia é a de dedicar-se a estudar os motivos de as suas previsões nunca se concretizarem.
No título faz-se referência ao humorismo de Deus. Na realidade, para falar de Deus partimos sempre da nossa experiência humana, na qual se reflete também a ação de Deus. Não há dúvida de que o humorismo é um meio real para nos estabelecer na serenidade. Faz parte da sabedoria, que é dom do Espírito Santo; aliás, é o sal da vida – e da vida dos crentes em particular –, que a preserva do dissabor.
Se a base do humorismo deve ser procurada na lei do contraste e na aproximação dos contrários, é preciso concluir que, em humorismo, Deus é mestre insuperável
A história de muitas heresias é, em boa medida, a história da perda do sentido de humor. Poderia acrescentar-se que também a perda de muitas vocações narra uma história de perda do senso do humorismo. Quem dele está privado toma tudo a sério e, por isso mesmo, faz tornar cada coisa muito dramática; ou, mesmo sem redundar no drama, pelo menos complica a vida. Saindo do âmbito das experiências religiosas, um psicólogo relata que dois colegas, privados de humorismo, encontram-se na rua e, após um silêncio embaraçoso, saúdam-se; depois ambos, durante todo o resto do dia, perguntam-se, angustiados: «O que quereria dizer-me?».
Alguns elementos do humorismo
Há muitos tipos de humorismo, que floresce em cada campo. Podemos dizer que elementos próprios do humorismo – ou do “sense of humour” – são a capacidade de colher os lados burlescos e contraditórios da vida, rindo deles com benévola compreensão; um olhar superior, que permite ver melhor e “além”; uma inteligência nova, que relativiza e redimensiona o quanto se pretenderia tomar por absoluto e excelso.
Na base do mecanismo humorístico parece estar constantemente uma relação entre fundo e primeiro plano, que é inesperadamente invertido. Tem-se, por isso, uma maneira diversa de ver a mesma realidade. Aquilo que era secundário torna-se visível, e coloca-se em evidência um não dito que, ainda que velado, transgride a lógica e constitui um elemento de surpresa.
Entre os efeitos mais importantes do humorismo cristão está o facto de nos desmistificar a nós próprios e aos outros. Há momentos em que somos tentados a vermo-nos em perspetiva heroica, sentimo-nos donos do mundo, capazes de desafiar e vencer todas as fragilidades. O impacto com a realidade da nossa miséria poderá, então, ser dramático, e a válvula de segurança é precisamente o humorismo
Muitos motivos deste género podem encontrar-se no Evangelho de Lucas, típico em revirar as situações de que o leitor está à espera, por exemplo, que uma parábola termine de determinada maneira, enquanto Jesus conclui de modo surpreendentemente diferente. Muito depende, evidentemente, também do estado de alma em que uma pessoa vive, e que não é sempre o evangélico. Disto são exemplo os dois discípulos de Emaús, que no desencorajamento devido ao fracasso dos seus sonhos, diante do desconhecido viandante que parece ignorar os recentes acontecimentos ocorridos em Jerusalém, citam exatamente o “kerygma”, isto é, a mensagem da salvação, mas fazem-no, com involuntário humorismo, para demonstrar que correu tudo mal, e não para dele extrair uma consolação.
Esta capacidade de ver algo que outros não veem tem outra qualidade, que é própria do divino, ou seja, a qualidade do artista. Por isso o humorismo tem uma ligação forte com a criatividade, a arte e o génio: ou seja, quando, em poucas palavras, se elabora uma migalha de sabedoria.
Centrando-nos no aspeto mais espiritual, dizemos que o humor oculta um juízo implícito, fundado numa conceção do ser humano e da existência humana. Kierkegaard considera o humorismo como a extrema aproximação do humano àquilo que é propriamente religioso-cristão. Ainda que aparentemente seja verdadeiro o contrário: como é possível conciliar o absoluto de Deus e o sentido de humor?
Deus ri com calma, quase como se tudo isto não o tocasse, e rindo afirma que também um simples riso puro, que brota de um coração reto, diante de uma qualquer idiotice deste mundo, reflete uma imagem e um raio de Deus
Hugo Rahner, ao retomar uma ideia do célebre historiador holandês Johan Huizinga, quer demonstrar que a perfeição da ética humana é uma misteriosa reprodução daquela eterna sabedoria que brinca desde o princípio na presença de Deus. À pergunta «Deus é humorista?», a resposta vem antes de tudo do mistério da incarnação. Que Deus, eterno e infinito, do qual ninguém pode ver o rosto e permanecer vivo (cf. Êxodo 33,20); que este Deus assuma a natureza humana e se torne homem como nós, e como nós sofra a fome e a sede, o frio e o calor, padeça a paixão e a morte, tudo isto subverte a mente.
Mas se o ser humano se desorienta, Deus “diverte-se” de um divertimento que é expressão de amor infinito e que escapa a toda a compreensão. Por trás do escândalo da incarnação há o abismo inexplicável da riqueza do amor e da sabedoria com que Deus dispôs a trama secreta dos factos de que a história humana é entretecida.
Se a base do humorismo deve ser procurada na lei do contraste e na aproximação dos contrários, é preciso concluir que, em humorismo, Deus é mestre insuperável. «O que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios; e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte» (1 Coríntios 1, 27). Toda a história da Igreja é uma sequela de escolhas – de pessoas, de acontecimentos, de instrumentos – que Deus opera com imutável sentido de humor e que lhe conferem um inconfundível sabor de otimismo e feliz surpresa.
A capacidade de estar ao mesmo tempo afastado das próprias representações da realidade e plenamente e apaixonadamente envolvido nas coisas de Deus não é apenas a expressão de um profundo e saudável humorismo cristão, mas é um sentimento da relatividade de tudo o que não é Deus
É verdade que no Evangelho Jesus nunca ri abertamente, ainda que o Evangelho esteja repleto de benévolos sorrisos; provavelmente, porém, não porque numa anedota aquilo que conta são a surpresa e a frase final que reviram a situação, e Jesus não podia rir porque já sabia como terminava.
O humorismo cristão
Um jesuíta húngaro, Ladislau Boros, escrevia que o núcleo íntimo do humorismo cristão reside na força do religioso. O humorismo vê o terreno e o humano na sua inadequação diante de Deus; vê como tudo aquilo que é terreno é imperfeito. Todavia, esta mesma resignação, por sua vez, é elevada na certeza de que tudo aquilo que é finito é rodeado pela graça de Deus. O ser humano que tem humorismo ama o mundo, malgrado a sua imperfeição, melhor, ama-o precisamente nela, como Deus. Sabe ser grato a Deus, porque vive neste mundo imperfeito.
Entre os efeitos mais importantes do humorismo cristão está o facto de nos desmistificar a nós próprios e aos outros. Há momentos em que somos tentados a vermo-nos em perspetiva heroica, sentimo-nos donos do mundo, capazes de desafiar e vencer todas as fragilidades. O impacto com a realidade da nossa miséria poderá, então, ser dramático, e a válvula de segurança é precisamente o humorismo, que não oculta as nossas fragilidades, mas fá-las ver com o olhar do Senhor. Em geral, para fazer isto Ele serve-se das criaturas ou de outros. Como acontece com o canto do galo para S. Pedro.
O humorismo é também um forte antídoto contra o medo. É preciso perguntar-se de uma das nossas tarefas fundamentais na vida não é a de vencer os medos, por vezes incontroláveis, que nos assaltam. O humorismo é um modo para exorcizar o mal
Sobre estas perspetivas heroicas em escombros germinam a humildade e a confiança. A primeira, como dizia S. João XXIII, recorda aos anciãos que o mundo não termina com eles, e aos jovens que o mundo não começou com eles. A segunda projeta-nos para diante e recoloca-nos no nosso lugar no pedaço de história que devemos percorrer, envolvendo-nos num olhar de ternura e indulgência.
O cardeal Henry de Lubac relatava o conselho de um cenobita anónimo, que dizia: «Se a tua alma está perturbada, vai à igreja, prostra-te e ora. Se a tua alma ainda continua perturbada, vai ao padre espiritual, senta-te aos seus pés e abre-lhe a alma. E se a tua alma permanece perturbada, retira-te então para a tua cela, estende-te na tua esteira e dorme».
Podemos recordar quanto diz o Salmo 2: «Ri aquele que está nos céus», mas, como nota Karl Rahner, Deus ri com calma, quase como se tudo isto não o tocasse, e rindo afirma que também um simples riso puro, que brota de um coração reto, diante de uma qualquer idiotice deste mundo, reflete uma imagem e um raio de Deus. Daquele Deus cujo riso demonstra que, no fundo, tudo é bom e tudo é graça.
De dois eremitas conta-se que, ao envelhecer como bons vizinhos em duas grutas pouco distantes, um dizia ao outro: «Querido irmão, estamos a envelhecer. Quando um de nós morrer, eu voltarei à cidade»
Se o humorismo saudável se pode definir como a capacidade de rir das coisas que se amam (incluindo nós próprios e aquilo que nos diz respeito), o caminho do humorismo na vida espiritual segue o mesmo passo com o humilde amor pela cruz e o Crucificado, e em particular no diálogo do crente consigo próprio e com Deus. A conversão, fruto do humorismo bíblico, é “recordar” (isto é, etimologicamente, “ter no coração”) que o ser humano não é o educador de Deus, mas é antes o contrário, porque é daquela presunção que nascem os sarilhos e os problemas.
O humorismo constitui um elemento precioso para uma vida sã e equilibrada inclusive do ponto de vista espiritual, porque tem muito a ver, como se dizia, com o gratuito, a criatividade, a inteligência, tudo elementos indispensáveis para a relação com Deus.
Não é por acaso que a Bíblia tem muitas ligações com o humorismo. Basta pensar nos livros sapienciais, em muitas narrativas, nos provérbios e na curiosidade do saber, que revela a maneira de observar o mundo com atitude divertida. A capacidade de estar ao mesmo tempo afastado das próprias representações da realidade e plenamente e apaixonadamente envolvido nas coisas de Deus não é apenas a expressão de um profundo e saudável humorismo cristão, mas é um sentimento da relatividade de tudo o que não é Deus.
«Certamente Deus pode abrir uma página de sobrenatural também num mundo secularizado como o nosso, por exemplo, operando milagres ou enviando Nossa Senhora a levar uma mensagem de esperança e de alegria aos seres humanos ou a uma Igreja particular. Mas, por favor, não à minha diocese. Eu, problemas, já tenho que chegue»
Nos santos – que são os enamorados de Deus – nota-se que esta profunda liberdade de espírito se combina com um igual profundo “sense of humour”. Não é simplesmente questão de bom carácter, de simpatia humana e de facilidade para a frase espirituosa, mas é também conformidade à experiência de como tudo é tremendamente relativo fora daquele Único que é inefável e diante do qual tudo é pequeno e limitado.
O humorismo como antídoto para o medo
Finalmente, o humorismo é também um forte antídoto contra o medo. É preciso perguntar-se de uma das nossas tarefas fundamentais na vida não é a de vencer os medos, por vezes incontroláveis, que nos assaltam. O humorismo é um modo para exorcizar o mal. Basta pensar em todas as sagradas representações que do século XII em diante – isto é, numa Idade Média marcada por calamidades, pestes, guerras e doenças – puseram a ridículo o diabo e aquilo que representava, e cuja sugestão desaparecia quando o homem de Deus sorria dele. Esta era uma maneira de exorcizar o medo.
Com o humorismo muitos santos exorcizaram a morte, restituindo-lhe o seu sentido humano, à luz de Deus. O nosso mundo atual já não é capaz de o fazer a não ser de maneira deformada e privada de humanidade, fazendo de conta que a morte não existe. De dois eremitas conta-se que, ao envelhecer como bons vizinhos em duas grutas pouco distantes, um dizia ao outro: «Querido irmão, estamos a envelhecer. Quando um de nós morrer, eu voltarei à cidade».
Mas até diante do “fascinans et tremendum” de Deus, que se pode tornar presente na nossa vida, o humorismo pode dar uma ajuda, também às pessoas de Igreja. Sem voltar aos tempos antigos, recordo um bispo de uma grande cidade, que a um jornalista que lhe perguntava se acreditava nos milagres ou nas aparições de Nossa Senhora no nosso tempo, responde: «Certamente Deus pode abrir uma página de sobrenatural também num mundo secularizado como o nosso, por exemplo, operando milagres ou enviando Nossa Senhora a levar uma mensagem de esperança e de alegria aos seres humanos ou a uma Igreja particular. Mas, por favor, não à minha diocese. Eu, problemas, já tenho que chegue».
Se isto também nos acontecer, devemos recordar-nos das páginas do Evangelho em que a irrupção de Deus espanta, como no caso de Maria na anunciação, ou dos pastores na noite de Natal, mas em que o anho acrescenta sempre aos protagonistas, e esperamos que também a nós: «Não temais; vede, anuncio-vos uma grande alegria» (Lucas 2,10).
[GianPaolo Salvini | In L'Osservatore Romano]