O que se vê melhor de olhos fechados? Não sei
Quando me aproximo de um texto (inclusive de natureza bíblica), antevejo e adianto um possível escândalo. Diria, de maneira atrevida, que a palavra que cura e salva, terá forçosamente de nalgum instante tropeçar o leitor, deixando-o trôpego. Como se um espigão espicaçasse e invertesse o andamento do seu andar e o coxear fosse o timbre do novo compasso.
Tenho por certo, que um bom leitor é aquele que no gesto de espreitar o texto, regressa desalojado.
Bem gostaria que isto acontecesse mais vezes comigo. Aceitar-me desarmado e indefeso, saindo de um encontro literário com mais perguntas que respostas e mais espantado do que satisfeito.
Nem domado nem sequer domesticado, a palavra de Deus pode atravessar-se, assim, diante de qualquer um. E não há mal que assim seja.
Recentemente, enquanto abria e lia os textos bíblicos de Domingo, o enredo insinuava aquilo que parece ser próprio de Deus: gerar nova vida cujo paladar pode soar a desacerto. De costas voltadas ou com as voltas trocadas, esta relação com Deus, deste ou de outros modos, provoca deste modo invulgar, aquilo que tanto procuramos e ambicionamos para a vida: viver mais extasiados que exilados (sair de si) para viver a partir de uma confiança colocada em Deus e na relação de amor com os outros.
Se no primeiro instante, a força da vida comanda os tempos inigualáveis e insubstituíveis de devoção, ardor, entusiasmo, dedicação sublime, entrega heroica, empenho, desejo amoroso, alegria, esperança, força de vontade e voluntarismo, haverá seguramente um momento inadiável de interrogação, de pergunta ou de hesitação, o encontro com a fragilidade e o fracasso
Naquele Evangelho de Marcos, sobretudo no capítulo quatro, vamos encontrar quatro breves histórias com uma roupagem de parábola.
As palavras e frases extraídas de uma vida diária e banal, alcançam também de forma escandalosa, uma promessa de transformação. A vida vai mudando de forma.
Se as primeiras duas - a do semeador e a da lamparina - nos falam de um trabalho necessário de quem semeia e provoca a combustão, de quem trabalha e vigia, ilumina e investe; as outras duas, aquelas lidas no passado Domingo - a semente e o grão de mostarda - avizinham uma outra e inédita dimensão diante do qual a parábola parecia mera poesia: «enquanto o semeador dorme, a semente cresce e germina sem que ele saiba como», «sabendo que aquele grão sendo a menor das sementes, tornar-se-á a maior das plantas da horta».
Atrever-me-ia, pois a dizer, que há um lado da vida a não descuidar: a da mística. Aquela própria e encontrada por quem confia e, aprendeu, a dormir. Não a dormitar, mas a dormir.
É curioso que as parábolas se façam vida e carne no mesmo capítulo. No final, antes da cortina encenar o próximo episódio, Marcos coloca diante da nossa visão um Senhor que dorme na proa de uma embarcação açoitada por uma desgovernada tempestade.
“Não te importas que pereçamos?”
De facto, parece haver pouco interesse e importância que se durma na vida do espírito.
Ora, talvez estejam aqui anunciadas neste exercício completo e complexo de semear, os estados de conversão e transformação da vida espiritual pelos quais teremos de percorrer.
Se no primeiro instante, a força da vida comanda os tempos inigualáveis e insubstituíveis de devoção, ardor, entusiasmo, dedicação sublime, entrega heróica, empenho, desejo amoroso, alegria, esperança, força de vontade e voluntarismo - podemos chamar-lhe a época da semente lançada à terra - haverá seguramente, testemunhada pelo texto e pela biografia de tantos homens e mulheres de Deus, um momento inadiável de interrogação, de pergunta ou de hesitação, o encontro com a fragilidade e o fracasso, de uma vida escondida cujos efeitos não são medidos nem testemunhados, uma alternância estranha e estrangeira de moções e estados de espíritos e, sobretudo, de acontecimentos não previstos e programados onde pessoa se dá conta que a semente não germina por vontade do semeador.
Não controlando, passaremos a viver. A viver de uma nova sabedoria: sabiamente ignorantes. Viveremos já não por nós nem para nós, já não porque vi mas porque fui visto, não levei o Senhor mas descobri-O, não por força de vontade mas por rendição de armas
Não controla o que lhe acontece e sucede, não articula o futuro, não entende o mistério da sua própria vida e não abranda ou antecipa os ciclos da vida, como se esta fosse uma simples e escancarada partitura.
Partida por dentro, inicia-se aqui na vida a tão aguardada e bem-aventurada crise.
A crise do não saber.
Não conhecendo, nem entendendo e não sabendo avizinha um enorme dom do Espírito Santo: o da sabedoria.
Feito aquilo que poderia estar ao seu alcance, a vida não tem comando, o futuro escorre sem caudal, Deus afigura-se sem forma porque cheio de mistério, a sua vontade é uma pergunta mais do que uma garantia, a certeza dá lugar à confiança e a segurança à esperança.
Levados e conduzidos, o Senhor adiante e na dianteira encontra-nos reconhecidos e a dormir. A dormir de outra forma.
E não controlando, passaremos a viver.
A viver de uma nova sabedoria: sabiamente ignorantes.
Viveremos já não por nós nem para nós, já não porque vi mas porque fui visto, não levei o Senhor mas descobri-O, não por força de vontade mas por rendição de armas, não por negligência ou preguiça mas por obediência e docilidade, não por desinteresse ou falta de compromisso, mas por coragem e amor.
Talvez seja estranho isto que direi agora. Mas, acredito que também a dormir se verão novas todas as coisas.
E não sou eu que o digo, mas o semeador.
[P. Nuno Branco, SJ]