Fé, arte, beleza, inutilidade, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 4 agosto 2021  •  Tempo de Leitura: 6

Ainda somos herdeiros de um cristianismo muito racional, muito organizado de categorias mentais, e deixámos as abstratas. O papa Bento XVI falou muito disto no seu pontificado, e o papa Francisco tem continuado.

 

Quando o papa Francisco voltou da viagem apostólica ao Japão, perguntaram-lhe, no avião: o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente? E ele respondeu: temos de aprender a poesia que os orientais têm.

 

A fé não é apenas abstração. Se a fé não faz arder o coração, se não é uma espécie de febre, se não nos torna brasas, mas é apenas uma cinza mental, então a fé é incompleta. Cada um dos três transcendentais – a verdade, o bem e a beleza – é fundamental.

 

A beleza é a experiência da verdade, como o amor, a caridade é uma experiência prática da verdade. Mas a beleza é interioridade, é emoção, é perceber que há um olhar que nos excede, é a excedência do sentido, é ver para além do imediato e é ganha ruma sensibilidade ao corpo, àquilo que nos chega através dos sentidos.

 

O grande teólogo Romano Guardini dizia que a beleza é o contrário do ornamento, não tem nada a ver com ornamentação, com o bonitinho. Beleza é a experiência da verdade


Fazemos uma espiritualidade dos sentidos espirituais, e esquecemos os sentidos naturais, que é aquilo que a arte nos ensina. A arte é uma mistagogia, uma iniciação ao mistério, que acontece a partir dos sentidos naturais – a visão, o olfato, o sabor, a escuta, o tato.

 

Acredito, e vejo-o em tantos artistas que conheço, que eles, mesmo sem saber, estão a trabalhar com a matéria espiritual. Porque estão a trabalhar com a interioridade humana. Estão a trabalhar com uma visão espiritual da vida. Por isso, é fundamental percorrer a via da beleza.

 

Durante muito tempo a Igreja viveu um divórcio com as artes. E viveu também, de certa forma, um divórcio com o sensível. Hoje, precisamos de uma mística do sensível, e precisamos de perceber que a beleza é uma via para chegar a Deus.

 

A beleza é uma forma de revelação. A beleza é a experiência. O grande teólogo Romano Guardini dizia que a beleza é o contrário do ornamento, não tem nada a ver com ornamentação, com o bonitinho. Beleza é a experiência da verdade.

 

«Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus./ Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!// (O abandono me protege)»


Tive o privilégio de assistir à lição do papa Bento XVI na capela Sistina, quando ele reuniu artistas de muitas proveniências, para relançar o Átrio dos Gentios. Ele disse, citando o papa Paulo VI, que nós [artistas e Igreja] temos tanto em comum, e o principal é a procura da verdade.

 

Hoje percebemos que a via da beleza, o caminho do sensorial, a estética do sensível são dimensões sobre as quais precisamos de trabalhar, de abordar, porque são caminhos necessários para chegar ao coração do ser humano e à experiência de Deus. (…)

 

Penso muitas no grande mestre que é Manoel de Barros; num dos seus poemas, diz: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:/ quando cheias de areia de formiga e musgo – elas/ podem um dia milagrar de flores.// (Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)// Também as latrinas desprezadas que servem para ter/ grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.// (Eu sou beato em violetas.)// Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus./ Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!// (O abandono me protege)».

 

Gosto muito deste poema que, para nós, crentes, é um desafio muito grande: temos de descobrir a alegria, a beleza, a urgência desta inutilidade. Num tempo em que estamos a pensar novos caminhos (…), não esquecer a inutilidade também como caminho.

 

O que nos protege não são os muros, o que nos protege é o relento e o abandono, isto é, a capacidade abraâmica de partir, a capacidade abraâmica de confiar


S. Francisco de Assis dizia aos seus confrades que deviam plantar na horta todas as plantas úteis que servissem de comida à mesa do convento, mas deviam, num espaço, deixar crescer flores – que eles não iam comer – para o alimento da sua alma.

 

A inutilidade protege-nos, e é muito importante este apego pelo abandono. Também as latas abandonadas podem um dia milagrar violetas. E nós vemos isso na casa dos pobres, que não têm vasos bonitos, mas agarram numa lata velha, põem um pouco de terra, e é um milagre de flores.

 

Com este poema o desafio é este: o chamamento a acreditar que o grande nutrimento é o dom, e quando tornamos o dom mais radical, o milagrar violetas acontece. O que nos protege não são os muros, o que nos protege é o relento e o abandono, isto é, a capacidade abraâmica de partir, a capacidade abraâmica de confiar. Estamos sempre a voltar àquilo que o primeiro crente foi chamado a fazer.

 
[Card. José Tolentino Mendonça | Fonte: Jesuítas Brasil]

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