Será possível fazer a paz entre Israel e a Palestina?
Diria que é possível escolher um caminho para uma paz, onde não haja vencidos nem vencedores. Na situação actual, estão todos a ser vencidos, estão todos a contribuir para o pior.
1. Tenho seguido o trabalho notável do PÚBLICO para oferecer, aos seus leitores, diversas perspectivas para a leitura da tragédia actual que está a destruir Israel e a Palestina. Não era, todavia, sobre esta tragédia que tinha pensado na crónica deste domingo. Por puro acaso, encontrei um longo texto da minha intervenção na Sessão do Dia Internacional de Solidariedade com a Palestina, em 2009. Nem sabia que esse texto existia. Não o vou reproduzir. Seriam necessárias muitas crónicas. Destaco, apenas, algumas passagens para entender algo deste tempo tenebroso sem ceder ao cinismo e ao pessimismo de que falava Álvaro Vasconcelos e, sobretudo, apontando algum caminho de esperança.
Referi nesse documento que, em 1920, ainda sobre a administração britânica, Einstein escreveu uma carta a um árabe, com uma proposta secreta: nós, árabes e judeus, devemos escolher um conjunto de pessoas, um conselho, em que haja sempre paridade absoluta de um lado e de outro, para fazermos um caminho em conjunto pela autonomia e para reivindicarmos esta terra para nós judeus e árabes. Fez um minirregulamento para que não fosse absorvido pelos dirigentes políticos nem de um lado, nem do outro, nem de judeus, nem de muçulmanos, nem de árabes e nem, claro, pela presença britânica.
Era evidente que o povo palestiniano preferia que não existisse o Estado de Israel e Israel não queria um Estado palestiniano, a não ser que fosse conforme os seus interesses e ia estudando a maneira de o Estado palestiniano ser impossível.
O que importava era ajudar a fazer compreender os dirigentes, dos dois povos, que estão todos a ser vítimas do medo, estão todos a ser vítimas da desconfiança, estão todos a ser vítimas do ódio, estão todos a multiplicar a violência e o ódio. Isto não é julgar da legitimidade de ninguém, é a própria natureza das atitudes bélicas para as quais não há saída.
Uma solidariedade que não favoreça a cooperação justa entre Israel e o povo palestiniano também não é solidariedade, apenas alarga o fosso e o muro. Temos exemplos, na História, para provar que só o caminho do perdão mútuo conduz à reconciliação e à paz. A França e a Alemanha estiveram em guerra – e que guerra! –, tiveram de fazer esse gesto. Sem esse gesto teriam um sentido de guerra permanente. Nelson Mandela é o exemplo mais eloquente desse método.
Conhecemos judeus e palestinianos que já fazem esse caminho. Atrevo-me a dizer que são eles que precisam da solidariedade mundial, para fazerem uma grande corrente global, que leve as lideranças dos dois povos a perceber que os caminhos que têm seguido não levam a lado nenhum a não ser engrossar o rio de sangue.
As pessoas poderão perguntar, isso é possível? Não tenho resposta. No entanto, diria que é possível escolher um caminho para uma paz, onde não haja vencidos nem vencedores. Na situação actual, estão todos a ser vencidos, estão todos a contribuir para o pior.
Uma sugestão simples: é necessário divulgar, a nível mundial, todas as iniciativas, todas as organizações, todas as pessoas que desejam a paz. Há judeus apaixonados pelo povo palestiniano e há palestinianos que são, também, apaixonados por judeus e já viveram, em muitas épocas, em conjunto e em amizade. Portanto, o que neste momento é necessário é engrossar, de um lado e de outro, aquelas pessoas que pensam que é possível que os dois povos possam viver, organizar-se de outra maneira, diferente. A actuação do Estado de Israel parece a de um estado belicista, é autodestruidora. Destrói, em primeiro lugar, os próprios israelitas.
Quando falamos em povo, devemos potenciar tudo o que existe nos povos de desejo de paz para fazerem caminhos e até de resistência não violenta, mas de resistência activa, algo que impressione pelo amor mútuo que existe nos dois povos.
2. Em 2001, a escritora Karen Amstrong recebeu o prémio TED por ter lançado a Carta da Compaixão, com base na regra de ouro, tanto na sua formulação positiva como negativa – que é central em todas as religiões –, não só nas religiões abraâmicas, mas em todas as religiões. Estas são, quase sempre, apresentadas como focos de guerras. Esse prémio já foi dado a muitos cientistas e personalidades que têm tido uma ideia nova, uma ideia capaz de renovar o mundo. Em 18 minutos, tinha de expor, perante uma grande assembleia com muitos peritos, essa sua ideia.
A regra de ouro que Karen Amstrong descobriu com espanto, no coração das diferentes tradições religiosas, éticas e espirituais, embora formulada com pequenas diferenças e explicitada de várias maneiras na sua intervenção, costuma exprimir-se de forma negativa, não faças aos outros o que não desejas que os outros te façam e, de forma positiva, faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem. Esta é a regra de ouro que é muito anterior tanto ao judaísmo como ao cristianismo, mas foi acolhida nos princípios do judaísmo e do cristianismo e, depois, também do Islão. Deve englobar ateus, agnósticos, todas as pessoas de diferentes tendências porque é um princípio ético, princípio que serve de guia a toda a Carta da Compaixão.
Compaixão não é comiseração, pena, situação de coitadinhos e de coitadinhas. Quando falamos em compaixão não se trata só de recusar a indiferença perante a tragédia. Impele a trabalhar sem descanso para aliviar o sofrimento do próximo, a destronar o nosso eu do centro do mundo para, nele, colocar os outros. Ensina-nos a reconhecer o carácter sagrado de cada ser humano e a tratar cada pessoa, sem excepção, com respeito, equidade e absoluta justiça.
A carta convoca todos os homens e mulheres a recolocar a compaixão no centro da moral e das religiões, a retomar o antigo princípio de que são ilegítimas todas as interpretações das escrituras religiosas que geram violência, ódio ou desprezo. A cultivar uma inteligência compassiva perante o sofrimento de todos os seres humanos, mesmo daqueles que nós consideramos nossos inimigos e de quem nos consideramos, muitas vezes, inimigos.
Esta carta não pretende lançar uma nova organização. O seu objectivo é fazer ressaltar o esforço de todos os grupos e movimentos para aumentar a visibilidade do seu trabalho e torná-los contagiantes. A carta pretende mostrar, de forma activa, que a voz do negativismo e da violência, muitas vezes associada à religião e às religiões, é apenas de uma minoria e que a voz da compaixão é, pelo contrário, a voz da grande maioria.
3. É urgente revelar os judeus que são solidários com o povo palestiniano e os palestinianos que são solidários com o povo judeu. Sem apoiar e robustecer, de forma prática, esta solidariedade só pensaremos em robustecer o equipamento bélico, de um lado e do outro, para ver quem mata mais.
Fazer crescer este sentimento de estima mútua pode levar muito tempo, mas é a direcção certa, a direcção fecunda porque, desde já, escolhe a cultura da paz que vai gerando uma terra de convívio, uma terra santa. Neste momento, parece uma terra maldita.
O roteiro da paz não deve ficar só na mão dos dirigentes políticos. Deve procurar envolver todas as pessoas de boa vontade a nível mundial.