Francisco: precisamos de uma teologia que saiba mais a carne e a povo

Razões para Acreditar 6 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 9

Prefácio do papa Francisco ao livro “Ripensare il pensiero. Lettere sul rapporto tra fede e ragione a 25 anni dalla ‘Fides et Ratio’” (Repensar o pensamento. Cartas sobra a relação entre fé e razão, 25 anos após a “Fides et Ratio”), ed. Marcianum Press, 2023.

 

Associa-se muitas vezes à investigação teológica, especialmente a académica, um uso rigoroso da razão. Por quanto isso seja importante e necessário, todavia a cada dia sentimos na realidade que o mistério da vida é maior do que todo o exercício da razão. A vida é maior e o nosso coração é um abismo. Como afirma Pascal, «o último passo da razão é o reconhecimento de que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam».

 

Isto vale ainda mais quando nos colocamos diante do mistério de Deus. O uso da razão e o aprofundamento do pensamento podem abrir trilhos de conhecimento apenas quando nascem da oração e do espírito de contemplação do seu mistério, cujas riquezas e ciência são inescrutáveis (cf. Romanos 11, 33).

 

Compreende-se assim que a tarefa da teologia não pode limitar-se a uma sistematização ordenada de ideias e conceitos. Devemos sempre estar vigilantes contra o fantasma do racionalismo iluminista, que nos conduz a organizar os conteúdos da fé, reduzindo-a, no entanto, a uma teoria distanciada da realidade concreta, da história do povo em que está mergulhada, das perguntas da vida e das feridas dos pobres. Pelo contrário, não se pode esquecer que o cristianismo tem o seu centro vital na incarnação de Deus em Jesus, que para muitos continua a ser um escândalo e que somos sempre tentados a adocicar a favor de uma “fé intelectual” e muitas vezes burguesa.

 

Quando a reflexão teológica cedeu à tentação de racionalizar a fé, tornou-se uma ciência árida, sem carne e sem coração, incapaz de transmitir, juntamente com as razões da fé, o estremecimento do encontro com Deus. O cardeal Newman, num dos seus Sermões, falava de «usurpação da razão», uma tentação que nos conduz a interpretar a fé e a própria Escritura segundo uma «sabedoria mundana» e uma mentalidade secularista.

 

O pensamento cristão, que apesar de guardar riquezas notáveis, precisa de ser repensado à luz das novas aquisições humanas, científicas e culturais; precisa de ser desafiado pelas exigências da evangelização, que requerem uma “teologia em saída”, capaz de chegar às perguntas muitas vezes situadas nas fronteiras de existências complexas, atormentadas e feridas


Precisamos de recuperar o caminho de uma teologia incarnada, que não nasce de ideias abstratas concebidas à secretária, mas que brote dos trabalhos da história concreta, da vida dos povos, dos símbolos das culturas, das perguntas ocultas e do grito que se ergue da carne sofredora dos pobres. Uma teologia gerada por Deus, que leve anúncios de libertação ao mundo; uma teologia que da ciência da fé se torne “sabedoria espiritual”, para acompanhar as mulheres e os homens do nosso tempo à descoberta da surpreendente novidade do Evangelho; uma teologia que de “saber académico” se torna “saber do coração”, para suscitar divinas inquietações e encorajar o desejo humano de se orientar para junto do Mistério de Deus.

 

O que precisamos é isto: uma teologia que não se preocupe em “medir distâncias” ao Mistério de Deus, mas que se deixa surpreender pelo seu amor sem medida, aventurando-se com entusiasmo no risco da evangelização e no serviço ao Povo Santo de Deus: para que se reavive o coração de quem procura o Senhor (cf. Salmo 69, 33).

 

Na atual mudança epocal precisamos, portanto, de novas estradas e de novos paradigmas. Precisamos de “repensar o pensamento”: é a tentativa audaz deste livro e da reflexão teológica de D. Antonio Staglianò, presidente da Academia Pontifícia Teológica, que assina uma incursão criativa no fazer teologia, ao escrever algumas cartas aos “grandes” da filosofia e da teologia.

 

O pensamento cristão precisa de ser renovado por linguagens e categorias novas, capazes de falar ao coração de todos, de chegar próximo dos distantes, de acolher quem a pensa diferentemente, de consolar os aflitos, mas também de «afligir os consolados»


Destas missivas emerge uma urgência: o pensamento cristão, que apesar de guardar riquezas notáveis, precisa de ser repensado à luz das novas aquisições humanas, científicas e culturais; precisa de ser desafiado pelas exigências da evangelização, que requerem uma “teologia em saída”, capaz de chegar às perguntas muitas vezes situadas nas fronteiras de existências complexas, atormentadas e feridas; precisa de ser renovado por linguagens e categorias novas, capazes de falar ao coração de todos, de chegar próximo dos distantes, de acolher quem a pensa diferentemente, de consolar os aflitos, mas também – como gostava de dizer o P. Tonino Bello – de «afligir os consolados», para que todos se deixem tocar e ferir pela radical novidade do Evangelho.

 

Para usar uma imagem: uma teologia que “olhar para o Alto”, à escuta da Palavra; uma teologia “que fixa o olhar no centro” propulsor da vida cristã, que é Jesus; uma teologia “que olha para baixo”, que se abaixa como o Mestre para lavar os pés ao mundo, para discernir na História os gérmenes do Reino de Deus e para acompanhar as inquietas perguntas da humanidade.

 

Gosto de recordar o Beato Antonio Rosmini, a quem o autor deste livro está particularmente ligado, que afirma que, em determinado ponto da História, a doutrina cristã foi enclausurada nos compêndios da teologia racional, e «não se resumiu apenas nesses compêndios, resumiu-se também de outra maneira, ou seja, abandonando inteiramente tudo aquilo que cabia ao coração e às outras faculdades humanas, cuidando apenas de satisfazer a mente. Por isso estes novos livros deixaram de falar ao ser humano como os antigos; falavam a uma parte do ser humano, a uma única faculdade, que nunca é o ser humano: a ciência teológica ganhou, mas diminuiu a sabedoria, e as escolas adquiriram assim aquele caráter estreito e restrito que fez dos escolásticos uma classe separada dos restantes seres humanos».

 

É uma advertência de grande atualidade, para que a teologia não se torne estreita e não nos separe do mundo.

 

Precisamos de uma teologia que procura e discerne o ritmo do amor de Deus nos incertos passos do ser humano, os olhos luminosos de Jesus nas trevas do coração e do mundo, os caminhos abertos pelo Espírito, que ao infringir os nossos fechamentos nos torna audazes na construção de um mundo fraterno e solidário


Estou feliz por apresentar este livro, que ao contrário evoca o valor de uma teologia popular, que sai de si própria para habitar “outros lugares”: não só a academia, mas também a estrada; não só a investigação científica, mas também as perguntas do coração; não só a razão, mas também a imaginação; e, sobretudo, uma teologia que procura e discerne o ritmo do amor de Deus nos incertos passos do ser humano, os olhos luminosos de Jesus nas trevas do coração e do mundo, os caminhos abertos pelo Espírito, que ao infringir os nossos fechamentos nos torna audazes na construção de um mundo fraterno e solidário.

Prosseguir por esta estrada é o meu desejo. Ter a coragem desta teologia que sabe “a carne e a povo”. E deixar que o Senhor nos acompanhe, para receber dele a alegria da adoração, o zelo de uma caridade operativa e a coragem de imaginar um mundo novo.

 
[Papa Francisco | In L'Osservatore Romano]

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