O papa de rua não fala como padre, por Antonio Spadaro

Pastoral da Comunicação 19 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 8

Bergoglio é um grande comunicador. É-o não porque adote estratégias específicas, mas porque se sente livre de ser e de se comunicar. A sua mensagem é por isso capaz de tocar as pessoas de maneira imediata, direta, intuitiva. Em particular, a sua capacidade comunicativa radica-se numa vivência pastoral e numa torção de corpo e de palavra. Torção do corpo: a sua autoridade nunca se exprime de maneira estatuária, mas até a sua própria corporeidade se balanceia para o interlocutor. Por vezes parece, inclusive, que perde o equilíbrio. Torção da linguagem: o papa gosta de usar um vocabulário de verbos, mas também de imagens inesquecíveis e de neologismos. Até a linguagem perde o equilíbrio da formalidade. Por vezes, Francisco usa verbos inabituais de palavras italianas mas torcidas em formas de dialeto que extrai da memória dos seus avós, a avó sobretudo. Numa palavra: realiza uma comunicação autêntica, desenvolta e eficaz.

 

A sua linguagem é radicalmente “oral” porque radicalmente pastoral. Também a reflexão escrita é a formalização de um texto que é pensado dentro de uma interlocução. É por isso que o papa está sempre dentro do acontecimento comunicativo, cria-o e desenvolve-o do interior: não é o ator de uma parte escrita ou de um discurso escrito. Por isso, mais que “comunicar”, o papa Francisco cria “eventos comunicativos”, nos quais se pode participar ativamente. A propósito, notamos uma coisa: o papa Francisco e João Paulo II são duas grandes figuras de comunicadores, mas por motivos opostos, em certo sentido. João Paulo II, cultor da densidade da palavra, e da palavra poética, modelava o gesto ao ritmo da palavra. Era a palavra que fazia florir o gesto e o ritmo. Para Francisco é o contrário: é o gesto que liberta a palavra e a plasma.

 

Há, portanto, uma oralidade radical da palavra de Bergoglio: a carta, a correspondência, a palavra escrita para ser buscada tem de transportar consigo as raízes da oralidade. E esta oralidade é muitas vezes materna, misericordiosa. Para o papa Francisco, o pregador, de maneira particular, é uma mãe, deve usar uma linguagem “materna”, ou seja, que tenha o sabor originário da “língua mãe”, simples, do latim “sine plica”. A simplicidade diz respeito à linguagem que deve ser bem compreensível, para não correr o risco de ser um falar vazio. Como se faz para se adaptar à linguagem dos outros para poder chegar a eles com a Palavra de Deus? Responde o papa na “Evangelii gaudium”: deve escutar-se muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e prestar-lhe de boa vontade atenção (n. 158). A linguagem do papa é muito simples, imediata, compreensível por cada um. Esta aptidão de Francisco vem-lhe da sua vida de constante contacto com as pessoas.

 

No fundo aqui está um desafio à linguagem teológica: também ela se arrisca a acabar por ser influenciada pelo “paradigma tecnocrático”. O seu excessivo tecnicismo confina com o burocrático. É por isso que, por vezes, o Evangelho é pregado com linguagem “de padre”. Nada de mais distante daquela que Bergoglio quer realizar


Francisco fala a linguagem da vida e da fé, que é obviamente mal entendida porque não avança através de rígidas argumentações lógico-formais. Não pretende lavrar comunicados de imprensa ou dar lições; quer abrir um diálogo. Quem o acusa de ambiguidade não compreendeu o terreno existencial e empírico que move o seu discurso. É sobre a relação direta, autêntica e sem assimetrias que vive a incisividade e a novidade da sua transmissão da mensagem. Neste sentido é uma linguagem radicalmente pastoral. Mas é precisamente esta pastoralidade que lhe confere vibração poética. A linguagem de Bergoglio é riquíssima em metáforas, provérbios, expressões idiomáticas, neologismos e figuras retóricas que vêm não do culto da palavra elegante, mas ao contrário da gíria, do “porteño”, do falar de rua absorvido do quotidiano ou da relação pastoral com os fiéis.

 

Francisco – assim como o foi Roland Barthes, grande estudioso da linguagem inaciana dos “Exercícios espirituais” – sabe que dizer o amor, inclusive o amor de Deus, significa enfrentar a salgalhada da linguagem: aquela região confusional em que a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco, excessiva e pobre. À sua maneira, são “fragmentos de discurso amoroso”. É a linguagem, simultaneamente poética e popular, dos Profetas do Antigo Testamento.

 

Seria um erro trágico acreditar que a linguagem simples de Francisco é fruto de uma certa ingenuidade. Na realidade, temos aqui de recordar que o papa Francisco ensinou literatura: e não apenas a sua história, mas também escrita criativa. Bergoglio apreciou muito de poetas e escritores: de Borges a Hölderlin, de Marechal a Manzoni, de Bloy a Pemán… São autores dos quais extrai citações doutas, mas como partes espontâneas do seu falar, metabolizadas por processo interior. Mas é precisamente o gosto da palavra primigénia, colhida ainda com as suas raízes que mergulham no terreno do vivido, que o impele a estar atento à palavra que emerge do vivido e a voltar a propor mimeticamente. No fundo aqui está um desafio à linguagem teológica: também ela se arrisca a acabar por ser influenciada pelo “paradigma tecnocrático”. O seu excessivo tecnicismo confina com o burocrático. É por isso que, por vezes, o Evangelho é pregado com linguagem “de padre”. Nada de mais distante daquela que Bergoglio quer realizar. O seu objetivo é a libertação da energia própria do “logos” evangélico. Não só: a linguagem teológica arrisca a tornar-se um produto da fragilidade do “logos” ocidental, pelo qual a busca de uma linguagem que dê razões da racionalidade da fé arrisca-se a conduzir para longe da questão do real futuro da fé e da sua tarefa de anúncio querigmático. Por isso, traduzir Bergoglio é dificílimo, mais do que quanto ingenuamente se possa pensar. Mais do que a gramática, a prosa de Bergoglio precisa de uma análise poética e linguística.

 

No fundo, por isso, a pregação de Bergoglio, vendo bem, interroga-se sobre o próprio horizonte da possibilidade da comunicação do cristianismo. Este é o seu verdadeiro nó crítico.

 
[P. Antonio Spadaro | Introdução a "Dizionario Bergoglio"]

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail