Contra Francisco, contra o Concílio
O Papa Francisco tem opositores e inimigos? Sim, isso é claro. E é bom que se perceba que opor-se a Francisco é opor-se ao Concílio Vaticano II. A linha de separação passa pelo Concílio. Afinal, depois da primavera conciliar, veio um longo inverno, de que muitos, nomeadamente Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX, se queixaram. Com Francisco, regressou a primavera. Que se passa então? Dou dois exemplos.
1. Um dos núcleos da discórdia, a ponto de Francisco ser atacado por ser débil em teologia e até herético, é a sua reflexão sobre a possibilidade de, no quadro do devido discernimento, católicos recasados serem admitidos à comunhão. Mas, afinal, o próprio Bento XVI, quando era apenas professor Joseph Ratzinger, escreveu, em 1972, um texto nessa direcção. Sim, o casamento é indissolúvel, mas, cito, quando "um primeiro casamento se rompeu há já algum tempo" e de modo irreparável, e quando "um segundo enlace se vem manifestando como uma realidade moral e está presidido pela fé, especialmente no que se refere à educação dos filhos (de tal maneira que a destruição deste segundo casamento acabaria por destroçar uma realidade moral e provocaria danos morais irreparáveis), neste caso - mediante uma via extrajudicial -, contando com o parecer do pároco e dos membros da comunidade, dever-se-ia consentir a aproximação da comunhão aos que assim vivem".
2. Entre os maiores opositores a Francisco está o cardeal guineense (Guiné-Conacri) Robert Sarah, prefeito da Congregação para a Liturgia. O Papa emérito Bento XVI até escreveu um prefácio elogioso para a sua obra A Força do Silêncio - Contra a Ditadura do Barulho. Esse livro, cito, "ensina-nos o silêncio: o permanecer em silêncio com Jesus, o verdadeiro silêncio interior, ajudando-nos assim precisamente a compreender a palavra do Senhor de um modo diferente (...). É esta a base que lhe permite reconhecer os perigos que ameaçam continuamente a vida espiritual, mesmo a dos padres e a dos bispos, ameaçando assim a própria Igreja, na qual não raro ocupa lugar uma certa verbosidade em que se dissolve a grandeza da palavra".
Quem se atreveria a pôr em causa e a não louvar o mérito do apelo ao silêncio? Todos estaremos gratos a Sarah, mesmo os não crentes, pois das necessidades maiores nesta sociedade da ditadura do barulho é precisamente o cultivo do silêncio, lá onde se ouve o melhor: o silêncio que fala e no qual se acendem todas as palavras e atitudes que dão calor e sentido verdadeiro à existência.
Não é nisto que está o diferendo. O Papa Francisco admoestou-o publicamente por sugerir o regresso à missa em latim, com o celebrante de costas para o povo. Lembrou-lhe que Deus está voltado para todos os lados. E a que propósito o latim, como se Deus, digo eu, não entendesse as outras línguas? Mais uma vez, o terrível perigo do clericalismo. De facto, só os padres sabem latim e só eles, de costas, estariam em autêntico contacto com Deus...
Mais recentemente, Sarah arremeteu contra os católicos que legitimamente apresentam a mão para a comunhão: "É um ataque diabólico à eucaristia", diz. No prefácio ao livro do padre italiano Federico Bortoli, A Distribuição da Comunhão na Mão, afirma que a comunhão na mão é uma "falta de respeito" ao Santíssimo, acrescentando que "o ataque malvado mais insidioso consiste em procurar extinguir a fé na eucaristia semeando erros e favorecendo uma forma inadequada de recebê-lo" e que "a guerra entre o arcanjo Miguel e os seus anjos, por um lado, e Lúcifer, por outro, continua hoje nos corações dos fiéis: o objectivo de Satanás é o sacrifício da missa e a presença real de Jesus na hóstia consagrada." Os fiéis deverão de novo receber o Senhor na boca: "Porquê esta atitude de falta de submissão aos sinais de Deus? Recebê-lo de joelhos e na língua é muito mais adequado para o próprio sacramento." Embora reconheça algumas "boas iniciativas" do Concílio quanto à participação activa dos fiéis, denuncia: "Não podemos fechar os olhos ao desastre, à devastação e ao cisma que os promotores modernos de uma liturgia viva causaram ao remodelar a liturgia da Igreja de acordo com as suas ideias." E, num ataque àqueles que consideram que o Concílio foi "uma verdadeira primavera na Igreja". "No entanto, um número cada vez maior de líderes eclesiais consideram esta primavera como uma recusa, uma renúncia à sua herança milenar."
Eu concordo que é necessário dar dignidade à celebração eucarística. Mas não é farisaísmo a advertência de Sarah? Porventura é a língua mais digna do que a mão? Sobretudo, não é aos bebés que damos de comer na boca? Ora, não é de comunidades cristãs adultas que precisamos? Ou queremos cristãos menorizados e infantilizados?
Mais grave: não há nas posições de Sarah o pressuposto subtil, mas errado, de que na Igreja o núcleo são as celebrações e não a vida? Afinal, não é nesse pressuposto do primado das celebrações que assenta aquela declaração desgraçada de muitos que se dizem "católicos, mas não praticantes"? Pergunta-se: mas praticam na vida o Evangelho e a sua exigência de verdade, de justiça, de cumprimento do dever, de não corromper nem ser corrupto, de lutar por um mundo em que todos tenham o mínimo que lhes permita realizar a sua dignidade humana como Cristo mandou?
O que é verdade é que, contra o que insinua Sarah, na hierarquia autêntica do ser cristão primeiro está a fé viva no Deus de Jesus, que é Pai e Mãe de todos, com todas as consequências. Depois, só depois, é que vem a celebração: esta vida, a vida cristã, que é a vida quotidiana, familiar, profissional, a vida dos negócios e da política, iluminada pela fé a caminho da plenitude do Reino de Deus, celebra-se em eucaristia. Na fraternidade, na alegria, na beleza e recebendo mais Vida para a vida.