A estupidez das guerras
1. Para O Livro do Desassossego, “as guerras e as revoluções – há sempre uma ou outra em curso – chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvario de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata” [1].
Ainda antes deste texto, Fernando Pessoa já tinha escrito: “Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incómodo, o são todos os reformadores.”
Não diz só porque lhe dói a inteligência, dá um bom conselho, embora, como sempre, o julgue inútil: “Revolucionário ou reformador – o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível.”
Não falta nada para se concluir que Fernando Pessoa não passava de um reles reaccionário conformado com o mundo como ele está: um conservador, um decadente.
Talvez afirmasse a sua lucidez irónica e não, apenas, niilista: “O homem de sensibilidade justa e recta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a vida.” [2]
Esta fuga para a interioridade não se pode confundir com uma cedência à conversa beata ou búdica nem se reduz aos seus momentos de "quase místico" [3]. Fernando Pessoa confessa que pertence “a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. (...) Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia de futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro” [4].
No entanto, “reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil” [5].
Vai procurar fazer de todas as formas de falência e de inutilidade uma vitória, mediante a criação literária indiferente ao estado das coisas do mundo exterior: “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida.” [6]
A alergia ao revolucionário e ao reformador não deixa de ser pertinente na maioria dos casos. As grandes excepções, como Gandhi, Luther King, Mandela e outros, não podem fazer esquecer os criminosos das revoluções e das contra revoluções ao longo da história. Como dizia uma personagem de Dostoievski, o monstro mais monstruoso é um monstro dotado de nobres sentimentos. As tentativas de justificação da violência, para a vitória da revolução ou da guerra, só podem aumentar a estupidez.
2. Nesta crónica, não foram as ideias estéticas, sociais, políticas ou teológicas d’O Livro do Desassossego que me preocuparam, embora o considere uma possível introdução à mística, na medida em que destrói todas as formas de ilusão. O que me agrada é a sua impiedosa lucidez perante todas as formas de guerra e violência.
Na semana passada, Rui Tavares [7] evocou o mesmo tema: “Há cem anos e um dia os sinos das igrejas de Shrewsbury, em Inglaterra, tocavam com a notícia do fim da I Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, na mesma aldeia, bateram à porta da casa da Sra. Susan Owen para lhe entregar um telegrama. O seu filho Wilfred tinha morrido há exactamente uma semana, hora por hora, na frente de batalha em França.
Wilfred Owen foi uma das últimas estúpidas mortes de muitos milhões de estúpidas mortes de uma guerra estúpida que começou há cento e quatro anos e acabou há cem anos, feitos ontem, sem que ninguém saiba muito bem explicar exactamente porquê. (...) Morrer pela pátria pode ser necessário, pode ser até inevitável, pode resultar de um acto de bravura. Mas Owen viu à sua volta como se morria pela pátria na Europa das trincheiras, e não era doce nem honroso.”
Rui Tavares apresenta, depois, os números monstruosos das vítimas das guerras na Europa, desde a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) até à II Guerra Mundial (1939-1945). A guerra era o estado natural da Europa.
3. Trabalhei em Moçambique durante a guerra civil. Aconteceu-me a mesma coisa em Angola. Em Chiapas, México, vi-me cercado pela revolta zapatista (1994); entrei em Lima, Peru, quando o Sendero Luminoso tinha posto a cidade a ferro e fogo; na Colômbia, não senti, apenas, o que foram anos e anos de guerras. Em Medellin, quando foram interrompidas as negociações de paz, tive uma espingarda apontada às costas [8].
Nem sequer posso esquecer a estupidez das “guerras” entre aldeias das Terras de Bouro e a violência desencadeada nas feiras e romarias entre grupos.
Onde nascem os desejos de guerra e violência? Deixo em suspenso esta questão essencial para nova oportunidade, pois não pode ser abordada em alguns parágrafos.
Conhecendo a sua história bélica, não é pouca coisa celebrar 73 anos de paz na Europa. A grande interrogação é esta: se a guerra é uma estupidez, o que será preciso fazer para que os seus povos não voltem a ser usados como estúpidos?
O projecto europeu só tem a ganhar com os debates e as discussões que o tornem cada vez mais democrático e eficiente e no qual todos se possam reconhecer na diversidade das suas tradições e nas diferentes culturas e políticas. Aceitar, em nome da liberdade, as correntes e os movimentos apostados em destruir a Europa é consentir alegremente no seu suicídio.
A estupidez não tem de ser uma lei eterna.
[1] Frag. 454. Não se pode ler O Livro do Desassossego sem a profunda problematização de Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa Rei da nossa Baviera, Gradiva, Lisboa 2008
[2] Frag. 160
[3] Frag. 166
[4] Frag. 306
[5] Frag. 90
[6] Frag. 307
[7] Cf. A Velha Mentira e o Grande Esquecimento, PÚBLICO, 12.11.2018
[8] Cf. Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus, Mário Figueirinhas, Porto/Lisboa, 1995