A tragédia de Nice
Mais uma vez fomos surpreendidos por novos atentados perpetrados por fundamentalistas islâmicos. As reações de condenação não se fizeram esperar. Mesmo dentro da comunidade islâmica.
Num mundo como o nosso, ocidental, a questão religiosa deixou há muito tempo de ser um assunto primordial. Caminhamos para uma secularização tão extensa que a "enxotámos" para o foro pessoal, intimista e quase "supersticioso" de cada um. Este ateísmo prático está a levar a inteira Europa à ignorância cultural, quer da sua própria cultura, quer da cultura islâmica.
A cultura política islâmica difere de qualquer outra - não apenas ocidental, mas também asiática - por uma identificação total da lei religiosa e da lei civil, da religião e do estado.
Sabe-se que o Islão é uma construção sincrética, isto é, combina princípios e elementos teológicos do judaísmo, do cristianismo e do zoroastrismo. Maomé, durante as suas viagens comerciais, entre o final do século VI e o no início do século VII, conheceu e reuniu, todos estes conhecimentos e assim procurou construir uma religião simples, sem dogmas, sem clero e com uma moralidade social e sanitária - da circuncisão à proibição da carne de porco - adequada para manter unidas as tribos do deserto.
O que é grandemente proclamado é o Deus absoluto, pura vontade e poder, que fala ao crente por meio do profeta, ou seja, o próprio Maomé, o último autoproclamado dos profetas abraâmicos. Os fiéis são obrigados a se submeter - Islão significa submissão - à vontade de Alá, que se manifesta por meio do Alcorão, ditada por Alá através do Arcanjo Gabriel a Maomé e por este a alguns discípulos, depois interpretada pela comunidade político-religiosa - a Umma - por meio da formulação da lei islâmica , a Sha'ria: a lei positiva islâmica.
Esta cultura religiosa e política é completamente diferente da cristã ocidental, principalmente em dois pontos que são fundamentais: a liberdade humana e a separação clara entre religião e Estado. Se Alá dita, o Deus cristão propõe; se Alá impõe a sua vontade, o Deus cristão fala à razão; se te submeteste à sua vontade, sê-lo-ás para sempre; o Deus cristão deixa-te livre para ir, és livre para dizer não. A liberdade religiosa é tanto a liberdade de rejeitar a religião quanto a livre escolha de qualquer outra religião.
A cultura ocidental passou por um processo de purificação e edificação. A liberdade religiosa - o arquétipo e fundamento da toda a liberdade humana - foi conquistada na Europa por meio de lutas sangrentas e seculares, como sabemos. A cultura política europeia foi construída sobre a herança cristã, muitas vezes contra a própria Igreja.
Hoje, como pode ser visto por esta pequena descrição, a cultura política islâmica e a europeia são muito diferentes. Esta não é uma guerra religiosa, mas um conflito de civilizações. Só com diálogo é que conseguiremos chegar a consensos. O foco deve ser o que estas e todas as religiões têm em comum: o ser humano como um todo - Humanidade desejada e amada por Deus - e a sua felicidade. Só um islamismo mais moderado - muito presente em Portugal - conseguirá coabitar a nossa cultura.
A tragédia de Nice confirma a urgência e a complexidade cultural, social e política da questão da migração. A urgência de um combate pela integração cultural respeitando a fé de cada um.
Porém, para que tal aconteça, é importante que a nossa sociedade perceba a importância da religião no espaço público; é importante que a nossa sociedade não negue as suas origens; é importante que a nossa sociedade compreenda a necessidade da vida espiritual na materialidade da vida… Só assim, também compreenderá o islamismo na sua realidade complexa e em constante movimento.