A tragédia de Nice

Crónicas 3 novembro 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Mais uma vez fomos surpreendidos por novos atentados perpetrados por fundamentalistas islâmicos. As reações de condenação não se fizeram esperar. Mesmo dentro da comunidade islâmica.

 

Num mundo como o nosso, ocidental, a questão religiosa deixou há muito tempo de ser um assunto primordial. Caminhamos para uma secularização tão extensa que a "enxotámos" para o foro pessoal, intimista e quase "supersticioso" de cada um. Este ateísmo prático está a levar a inteira Europa à ignorância cultural, quer da sua própria cultura, quer da cultura islâmica. 

 

A cultura política islâmica difere de qualquer outra - não apenas ocidental, mas também asiática - por uma identificação total da lei religiosa e da lei civil, da religião e do estado.

 

Sabe-se que o Islão é uma construção sincrética, isto é, combina princípios e elementos teológicos do judaísmo, do cristianismo e do zoroastrismo. Maomé, durante as suas viagens comerciais, entre o final do século VI e o no início do século VII, conheceu e reuniu, todos estes conhecimentos e assim procurou construir uma religião simples, sem dogmas, sem clero e com uma moralidade social e sanitária - da circuncisão à proibição da carne de porco - adequada para manter unidas as tribos do deserto.

 

O que é grandemente proclamado é o Deus absoluto, pura vontade e poder, que fala ao crente por meio do profeta, ou seja, o próprio Maomé, o último autoproclamado dos profetas abraâmicos. Os fiéis são obrigados a se submeter - Islão significa submissão - à vontade de Alá, que se manifesta por meio do Alcorão, ditada por Alá através do Arcanjo Gabriel a Maomé e por este a alguns discípulos, depois interpretada pela comunidade político-religiosa - a Umma - por meio da formulação da lei islâmica , a Sha'ria: a lei positiva islâmica.

 

Esta cultura religiosa e política é completamente diferente da cristã ocidental, principalmente em dois pontos que são fundamentais: a liberdade humana e a separação clara entre religião e Estado. Se Alá dita, o Deus cristão propõe; se Alá impõe a sua vontade, o Deus cristão fala à razão; se te submeteste à sua vontade, sê-lo-ás para sempre; o Deus cristão deixa-te livre para ir, és livre para dizer não. A liberdade religiosa é tanto a liberdade de rejeitar a religião quanto a livre escolha de qualquer outra religião.

 

A cultura ocidental passou por um processo de purificação e edificação. A liberdade religiosa - o arquétipo e fundamento da toda a liberdade humana - foi conquistada na Europa por meio de lutas sangrentas e seculares, como sabemos. A cultura política europeia foi construída sobre a herança cristã, muitas vezes contra a própria Igreja.

 

Hoje, como pode ser visto por esta pequena descrição, a cultura política islâmica e a europeia são muito diferentes. Esta não é uma guerra religiosa, mas um conflito de civilizações. Só com diálogo é que conseguiremos chegar a consensos. O foco deve ser o que estas e todas as religiões têm em comum: o ser humano como um todo - Humanidade desejada e amada por Deus - e a sua felicidade. Só um islamismo mais moderado - muito presente em Portugal - conseguirá coabitar a nossa cultura.

 

A tragédia de Nice confirma a urgência e a complexidade cultural, social e política da questão da migração. A urgência de um combate pela integração cultural respeitando a fé de cada um.


Porém, para que tal aconteça, é importante que a nossa sociedade perceba a importância da religião no espaço público; é importante que a nossa sociedade não negue as suas origens; é importante que a nossa sociedade compreenda a necessidade da vida espiritual na materialidade da vida… Só assim, também compreenderá o islamismo na sua realidade complexa e em constante movimento.

Licenciado em Teologia. Professor de EMRC. Adora fazer Voluntariado.

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