Deus, omnipotência e misericórdia
O maior erro de Friedrich Nietzsche foi considerar Cristo fraco. Erro que dificilmente se entende, não de um ponto de vista psicológico, que aqui não nos interessa, mas do ponto de vista do grande filólogo que Nietzsche era e que conhecia bem os textos que de Cristo lhe falavam e nos falam em nossa contemporaneidade.
Não há nos Evangelhos um único momento de fraqueza de Cristo. Bem pelo contrário, toda a narrativa evangélica, integrada, numa sinopse não historiográfica, mas lógica, segundo o «logos» de uma presença que é liturgia de salvação, é uma indefetível manifestação de força. Não cabe aqui uma demonstração escriturística, que, no fim, coincidiria com uma glosa do Evangelho. Fica o incentivo para se reler integradamente a narrativa com olhos que procurem a força dos atos que promovem a salvação de isso que necessitava de ser salvo.
E o que necessitava ser tal era precisamente, é precisamente, a fraqueza humana.
Não se confunda, como Nietzsche fez, «fraqueza» com «fragilidade»: Cristo, como todo o ser humano, como José, como Maria, é frágil: frágil como eu, como tu, como nós, nós todos, sem exceção. Como o próprio Nietzsche.
Em sua familiar fragilidade – transcendental à humana espécie, porque esta é finita em cada um de seus elementos e como um todo, porque é sujeita à usura do movimento e à morte – Maria, José e Cristo são exemplos de força. Nada se encontra no Evangelho íntegro que manifeste de estes três algo que não seja sempre do âmbito e nível do forte.
É que «força», força humana – que é a única que intimamente conhecemos – é sinónimo de coragem; ora, todo o Evangelho íntegro é manifestação de força desta Família, de cada um de seus membros, de seu ato comum, que é um ato de amor.
Neste sentido, o exercício do ato de força é exercício de ato de amor: revisite-se, de novo, todo o uno Evangelho segundo este prisma: onde se encontra, por parte destes três, qualquer ato que não seja um ato de amor, amor precisamente forte?
Todo o comum Evangelho, por parte de seus protagonistas – o termo é para ser lido literalmente como «esses que são os primeiros em agonia, esses que dão a sua vida pelo bem para que vivem» –, é uma narrativa de atos que, para que possam ser, necessitam de força; alguns de uma força literalmente imensa.
Não se confunda «força» com «violência», pois este último termo diz de atos que negam o sentido de «força», na forma de «abuso de uso de força», por excesso ou defeito. Mesmo quando Cristo expulsa os vendilhões, apenas usa a força estritamente necessária para que o ato que tem de ser posto o seja: o lugar sagrado do Templo não é para ser prostituído pelos atos dos vendilhões. Cristo não usa força a mais ou a menos do que o que é estritamente necessário. Não há, assim, qualquer violência.
Usar força de menos, seria cobardemente falhar o ato necessário; usar força de mais, seria, pelo desnecessário do excesso, imediatamente um ato tirânico.
Este ato de perfeita força é, aliás, paradigmático do que deve ser a ação humana – não é a «do cristão», mas é toda a humanidade como tal – que empreende eliminar um mal: o uso perfeito da força necessária para que tal mal seja eliminado. Menos do que a força necessária e, por tal ato errado, imediatamente, quem tal opera se torna cúmplice do mesmo mal (é este o triste panorama em que a humanidade sempre viveu, quando, porque não tem força suficiente contra o mal, com ele colabora, isto é, colabora com quem realiza o mal). (1)
O momento em que a força superlativa de Cristo se revela com maior grandeza é quando perdoa a quem o destrói em sua condição humana incarnada. É a misericórdia, como absolvição de toda a maldade, como metamorfose de todo o mal através da metamorfose da relação entre carrasco e vítima, quando esta supera o carrasco não pela força da violência, mas pela força do amor, isso que constitui o ato humano mais poderoso, logo, mais forte.
É a violência da vingança que constitui ato próprio de fracos, de esses que, impotentes para a metamorfose espiritual do sofrimento em amor, se procuram afirmar através da última arma dos impotentes, precisamente a extensão de seu sofrimento e possibilidade de aniquilação a terceiros, sejam estes os seus carrascos ou não, tanto monta.
Lembre-se o Hitler que quis destruir a Alemanha que considerava tê-lo abandonado e, assim, merecia ser coaniquilada. Besta incapaz de misericórdia.
Ora, o que a mensagem do frágil, mas sumamente forte Cristo, veio trazer à humanidade mostra que a infinita grandeza ontológica de Deus coincide precisamente com a sua infinita capacidade – que é, no mesmo ato, vontade – de misericórdia.
E, há, nesta revelação, algo de tremendamente irónico: se e quando a besta – todas elas (e sou eu, por exemplo) – se dignar olhar para Deus, perceberá quer a força de Deus, que a sua própria força, ocultada pela sua fragilidade própria, essa que é feita pela mania que a força é violência.
Não é pelo esperado abraço de Deus a Maria que se percebe a infinitude da grandeza de Deus; é pelo inesperado – assim pensamos, nós, os violentos – abraço de Deus a Pedro, o traidor, ou a Hitler, o estúpido-mor da caridade, que Deus se revela como o Senhor do bem; como o Senhor que é o bem e a cuja força de bem nada faz obstáculo, senão a mais ignara estupidez de quem pensa que ser violento é ser forte.
Deus é omnipotente porque é misericordioso. Quem não for misericordioso nunca passará da condição infernal de uma bestialidade apenas vencível através do encontro da misericórdia de Deus com o desejo de misericórdia da pessoa.
A propósito, este texto é sobre o Inferno, paraíso dos violentos.
(1) Note-se que quem tendo podido travar Hitler nas fases iniciais de seu consolado, ainda fraco, o não fez, se tornou não apenas corresponsável pelo mal feito, mas, porque poderia tê-lo evitado, o principal responsável por tal mal. A besta Hitler fez o que dele se esperava; as bestas que poderiam tê-lo travado não fizeram o que delas se esperaria. E não foi por falta de aviso, por exemplo, do infatigável Churchill.
[©Américo Pereira]